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Mostrando postagens de setembro, 2016

OS CACARECOS

Elaine Morais Hoje por força do destino abri uma caixa de cacarecos. Encontrei cacarecos tão ridículos ali dentro que achei graça de mim. O brinco esquerdo de um par perdido, tampões de orelha, um batom seco. Todos esperando eventual uso. E ri da crença nos cacarecos úteis. Então abri outra caixa menor ainda. Encontrei cacarecos tão ínfimos ali dentro que senti carinho por mim. Miçangas de uma pulseira arrebentada, um pedregulho, uma estrelinha de plástico. Todos eles sem uso. E chorei de carinho pelos cacarecos inúteis. Era tão inexplicável guardá-los que senti saudades de mim. Saudade da época em que guardar cacarecos era natural. Saudade da doce inocência de quem nunca passou por grandes perdas.

A ARTE DA PERDA

Vaneska M. Depois de algum tempo de vida, a vida é de perdimentos. Assim fui alertada, quando ainda não era tempo de perder. A tantas coisas o perder é inerente, que perdê-las nem chega mesmo a ser um grande infortúnio. A arte da perda não é difícil de dominar. Perde-se algo a cada dia. Perdi cinco amores eternos. Tempo demais em discussões ordinárias. Uma camiseta preta; vinte e sete guarda-chuvas; duzentos e trinta e três pés de meia, algumas dúzias de brincos. Perdi as chaves de casas que também perdi. Perdi a conta das coisas que perdi, mas coisas são só coisas. Só servem pra tropeçar, ouvi no rádio. A esperança eu perdi uma vez. Avós, tios, vizinhos. Amigos cedo demais. Amigos insepultos. Perdi convívios fundamentais. Perdi contos, histórias, poemas, embalando gente que também perdi. Perdi metade da minha gentileza. Humor e banalidades. Perdi distâncias perto de mim. Duas bicicletas e a coragem de bicicletear. Perdi pudores, recatos, medidas. Perdi o medo do calendário que min

VOO BÁSICO

Maria Júlia Para saltar, eu tinha que levantar a asa delta, e correr para o cume. O céu era de puro anil. Não havia desculpas para voltar atrás. A não ser a velha insegurança. A cadeia de maus pensamentos começou, partiam do cérebro e se alastravam pelo corpo adentro. Uma dorzinha ansiosa se instalou no estômago e percebi que a calma que procurava sentir era pura imposição. Tentei respirar fundo, não deu certo. A cada inspiração vinha a expiração, apressada e irregular. Ah, a vida! Para que me comprometia com o desconhecido? Para que inventava situações complicadas? Para que procurava desafios o tempo todo, me envolvendo em bravatas que não faziam parte do meu feitio? Após a breve aula teórica e o treinamento sobre os procedimentos, a dor no estômago se fez acompanhar de uma taquicardia ameaçadora. Minha garganta estava ficando seca, as mãos, frias e trêmulas. O instrutor fez uma inspeção no equipamento, estava tudo certo: asa, alça, conexões. O único senão era eu, indeciso e