A ARTE DA PERDA

Vaneska M.

Depois de algum tempo de vida, a vida é de perdimentos. Assim fui alertada, quando ainda não era tempo de perder.

A tantas coisas o perder é inerente, que perdê-las nem chega mesmo a ser um grande infortúnio. A arte da perda não é difícil de dominar.

Perde-se algo a cada dia. Perdi cinco amores eternos. Tempo demais em discussões ordinárias. Uma camiseta preta; vinte e sete guarda-chuvas; duzentos e trinta e três pés de meia, algumas dúzias de brincos. Perdi as chaves de casas que também perdi.

Perdi a conta das coisas que perdi, mas coisas são só coisas. Só servem pra tropeçar, ouvi no rádio.

A esperança eu perdi uma vez. Avós, tios, vizinhos. Amigos cedo demais. Amigos insepultos. Perdi convívios fundamentais.

Perdi contos, histórias, poemas, embalando gente que também perdi.

Perdi metade da minha gentileza. Humor e banalidades. Perdi distâncias perto de mim. Duas bicicletas e a coragem de bicicletear. Perdi pudores, recatos, medidas.

Perdi o medo do calendário que minha pele estampa. O medo de ficar só eu também perdi. Três relógios.

Ando perdendo a cor dos cabelos. A luta contra o tempo eu perco um pouco de cada vez. Junto com o medo de não dar tempo de entender.

Perdi sobrecargas, pesos mortos e assombrações. No final das contas, muito do que perdi, prendia. Eu perdi âncoras.

“The art of losing’s not too hard to master,
though it may look like (Write it!) like disaster.”


*One art, Elizabeth Bishop
**De Uns Tempos Pra Cá, Chico Cesar

Comentários

  1. Você sabe resumir tão bem estes sentimentos Vaneska. Toca de leve mas vai lá no fundo.
    Maria Júlia

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  2. Este comentário foi removido pelo autor.

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  3. Que texto lindo Vaneska, lindo, lindo.
    Elaine Morais

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  4. Perdi tantas chances de me perder de outras maneiras que não sei se me perdi ou me encontrei. Só sei que não mais me dedico a coisas de tropeçar. No caminho há pedras e eu vivo pulando amarelinha.

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