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2016

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Eliana Gesteira

DOIS MESES

Maria Júlia Pois é, Já era novembro mas a linda árvore do parque continuava amarela teimando em não soltar suas folhas, insistindo em permanecer outonal, fazendo bem em não entregar os pontos. Lá fora os ventos uivantes já sopravam e a escuridão se instalava- cedo demais talvez- em certos lugares da Terra. E chegou dezembro, assim tão rapidamente, com suas prendas, convívio, excesso de consumo e ritos que se perdem nos tempos. Melancólico e alegre, como sempre. Vida que segue com a pergunta: o que estará arquitetando o novo ano? Quanto tempo de incerteza, desconcerto e sofrimento para o nosso Brasil? Ao longe, uns prematuros Papais Noeis de galocha acompanhados de coros de anjos de asfalto gelado. A profusão de mensagens reiterando amor, afeto, solidariedade, manifesta, de certa forma, a carência da nossa época.

TEMPO, TEMPO, TEMPO, TEMPO

Vaneska M. “És um senhor tão bonito, quanto a cara do meu filho”. Tempo - vou te fazer um pedido: não me deixe descuidar. Me ensine a estar atenta. Que eu não perca minhas horas contando minutos pretéritos. Que os relógios e os calendários não me sangrem. Que a dureza desse ano não torne dura minha matéria. “Por seres tão inventivo”. Tempo – me habilite a lidar com as feridas. Retrocesso. Opressão. Democracia abatida. Misoginia. Inflexibilidades. Ódio. Deboche. Miséria. Preconceitos multifacetados. Conservadorismo mortal. Acirramento de desigualdades. Que eu não seja tragada. Que meu espírito não se abata. Que eu conserve minha mais primitiva esperança. “És um dos deuses mais lindos” – Tempo. A ti minha pequena oração. *Oração ao Tempo, Caetano Veloso https://www.youtube.com/watch?v=jHTcEj_Am2E

ALTO MAR

Angela Fleury O que vivemos parece ser um teatro de infindáveis disputas, desobediências supremas, desafios e impedimentos. Afastamentos e aproximações suspeitas, operações deflagradas, soluções impossíveis, mobilizações e imobilizações, manifestações divergentes, substituições instáveis, ressalvas impróprias, adesões e decisões ocultas, perdas imediatas, deboches técnicos e institucionais. Paira no ar uma atmosfera poluída pelo descaramento, pela instabilidade e pela a mais federal incerteza. Montou-se um balcão, afirma a delação. Será que poderíamos pedir socorro à poesia? Ou seria à filosofia? Ou essa seria uma esperança ingênua? Qual seria o novo critério de conhecimento? Como poderíamos descobrir um novo modo de ação? Afastamento, silêncio, introspecção? Vivemos enormes rupturas, universais e pessoais, parece não haver no momento espaço para reconciliações poéticas. Até aonde o farol pode enxergar nada se vê. Alto mar, nenhuma terra à vista. Temperaturas altas e baixas

ÚLTIMOS M ESES DO ANO

Ana Maria Fortunato Schroer Um turbilhão de coisas ainda por acontecer e rever. Um milhão de coisas para fazer, refazer e desfazer. Tantos e tão poucos planos na gaveta da Vida por realizar. Últimos meses do ano ainda para tanto Amor e felicidade. Tantos e tão poucos meses, horas, minutos, para rir, chorar e rodopiar. Rebentar com essa forca que abunda em Mim, em Ti e en Nós! Últimos meses do ano cheios de guerras exteriores e separação, mas de uma Paz interior, aproximação e emoção. Últimos meses do ano que tanta gente me levou e tanta alegria nos deixou. E quando soar a Última badalada destes Últimos meses do ano, Agradeço à Vida e Olho com esperança os Primeiros meses de um Novo Ano.

QUO VADIS?

Jurandir  Eram as duas horas da manhã e eu ia caminhando por Waikiki, em direção ao hotel, quando vi esse personagem em plena rua fazendo gestos que mais pareciam uma dança inventada e coreografada especialmente para ele. Era como se estivesse escutando música celestial mas definitivamente não levava fones de ouvido. O mais curioso era como estava vestido. Descalço, usava um pano estampado muito colorido enrolado no corpo e atado com nós, como se fosse uma longa túnica. Tinha o cabelo castanho comprido, desgrenhado e uma barba não muito espessa. Parecia como teletransportado do filme Godspell... Umas mulheres negras, bastante gordas, sentadas do outro lado da rua começaram a rir descaradamente e a gritar elevando os braços de forma jocosa: Aleluia!! Aleluia!!!. Ele parou por um segundo, respondeu com um sorriso e seguiu em sua coreografia. Já nesse momento eu havia decidido segui-lo pois a minha curiosidade era grande. Minha percepção dizia que ele não era nem louco, ne

UMA VIAGEM DE TREM

Eliana Gesteira O trem passou sem parar por uma estação vazia. É noite e todos dormem dentro do vagão, menos o passageiro que anda devagar pelo corredor e que se segura cada vez que um solavanco o joga de um lado para outro. A luz repentina que veio de fora destacou na escurão a silhueta daquele homem e tornou visível por uma fração de segundos o prateado dos cabelos ralos, o azul lustroso do terno de corte impecável e o brilho dos fechos dourados de sua maleta de couro. São três e meia da manhã e o senhor de terno elegante não parece ter sono ou vontade de dormir. No exterior à composição ferroviária, além do negrume da noite, uma bruma espessa encobre a paisagem. Somente a memória de viagens anteriores, onde era possível ver campos verdes e casas solitárias com mulheres pendurando roupas ao sol, traz um vestígio de alegria aos olhos cansados do homem. A lembrança de dias ensolarados devolve também um pouco de calor ao luxuoso vagão, cujo ambiente altamente refrigerado pare

CHEGAR E PARTIR

Vaneska M. Muito mais em razão de minha inabilidade social e certa ranzinzice, estive longe das redes sociais por longos anos. Foi atendendo à intimação de um grupo de escrevinhadores, que pela primeira vez embarquei nessa viagem. Não tenho mais que cinco pessoas que realmente conheço conectadas através da rede. Entretanto, já nas primeiras estações, percebi que o movimento dessas poucas pessoas gerava uma infinidade de inter-relações e múltiplas informações. Uma imensidão de passageiros circulando freneticamente pelos vagões que seguem sem trilhos. Através do recém-descoberto recurso seguir , um monte de gente interessante foi embarcando no comboio. Minha primeira reflexão de viagem foi: dá pra editar a vida na rede social. Então, você pode cair na falácia de que o mundo é um lugar menos desagradável. Isso, claro, se você não ousar ler os comentários nas postagens. Bem, vamos às minhas notas de bordo. As redes sociais têm uma gramática e vocabulários próprios. Se

A VOLTA

Luiza Monteiro Outro dia voltei. Queria rever in loco o que me fora tão presente por dias, semanas e anos.  Não sei bem o que buscava. Mas, havia uma ânsia de recompor o cenário da minha infância. A retina em sua memória redesenhava os detalhes das paredes, dos quadros, até as ilusórias silhuetas de montanhas, prédios e animais, que eu, criança, acreditara ver, relutando contra o sono, e que nada mais eram que linhas da madeira na porta do meu quarto. E lá estava eu: pedindo informação aos porteiros enquanto a mente, esta, se deslocava... no tempo. Minha casa – um apartamento na Rua Xavier de Toledo - no que fora um elegante canto do centro da capital paulista, estava abandonada, num prédio que mostrava uma pujança degradada como todo o entorno. Com o mote “São Paulo não pode parar”, o centro se deslocava para outro ponto e mais outro, deixando um rastro de construções mancas e manchadas pelo acelerado desprezo urbano.  A chave! Não tinham a chave? Não dispu

DHARAMSALA

Angela Fleury A primeira impressão foi de deslumbramento. Eu havia imaginado uma coisa e tudo estava indo completamente além do imaginável. Hesitei entre tentar entender o que estava acontecendo ou me entregar e admitir a impossibilidade de uma compreensão daquela experiência. Sons de violino e piano seriam as perfeitas trilhas musicais de fundo daquela paisagem, tal era a grandiosidade de sua beleza. E eu os ouvia! Estaria indo encontrar os deuses? Ou estaria indo ao encontro das estrelas? Era meu primeiro contato com o teto do mundo, o Himalaia, onde muitos acreditam que os deuses e os mortais se encontram. Era um lugar de muita sabedoria e isto estava bem evidente na beleza de sua natureza branca e na profundidade de seus vales verdes e vermelhos. Quando todos gritaram, foi como se eu tivesse acordado de um sonho. O ônibus que nos levava montanha acima, apinhada de gente e de carga tinha derrapado no gelo fino e ali não tínhamos mesmo espaço de manobra. Voltei à realida

UM SONHO DE VIAGEM

Elaine Morais Da janela do avião as nuvens pareciam de algodão doce. Lá embaixo o Atlântico azul marinho, calmo. Quebrei o vidro e sai voando, a curiosidade tomou conta e decidiu conferir se a paisagem era verdadeira. De dentro do avião parecia um filme, uma tela de tv. Uma vez lá fora via o avião a direita, à esquerda o azul e branco, vasto. Mergulhei no mar de nuvens, primeiro tentando tocá-las e percebi que se desmanchavam ao toque. Assim como passar as mãos pelo vapor, só que frio. Embaixo de mim havia uma nuvem que parecia espessa, como uma gaivota planeei até ela e pousei. Ela me sustentou então me deitei. Depois rolei, da direita pra esquerda até sua borda, e de volta, várias vezes até ficar tonta. Dei cambalhotas, fiz castelos de nuvem, me enterrei nela. Senti sede então juntei uma bola de nuvem nas mãos que fechei como uma concha até ela se derreter e a bebi. Cansada aprontei um travesseiro e um cobertor de nuvem e dormi. Foi um sono calmo, acordei em meio às estrelas que b

VIAJANDO COM ALADIM

Maria Júlia Naquela noite, depois de eu ter passado um pano de flanela para limpá-la, a lâmpada que eu havia comprado em um modesto antiquário naquela aldeia remota da misteriosa região da Capadócia, começou a esquentar. Do seu bico saía uma fumacinha suspeita. Entrei em ligeiro pânico mas na minha pousada situada numa rocha não tinha mais ninguém na recepção, e eu não sabia o número do telefone do corpo de bombeiros local.  Abri a janela e a porta do quarto e gritei. Usei a palavra SOCORRO nas línguas que tinha aprendido na escola, até em uma já extinta, mas ninguém veio em meu auxílio. Pensei em jogar um casaco por cima da camisola e correr para a rua, mas não ousei. A escuridão era completa, só uma minguada lua ousava brilhar no céu. As estradas eram de chão batido, a região, repleta de cidades subterrâneas; a pousada ficava ao lado de um antigo caravan seray , ou seja, os antigos abrigos das caravanas que traziam do extremo oriente os diversos produtos e as exóticas e

FINAL DE SEMANA

Eliana Gesteira Saí distraída pela rua vestindo um vestido verde esmaecido como aquele dia de tempo ruim. Queria ver agitação, mas o céu pesado e cor de chumbo trouxe a paz de ruas vazias. Da multidão, que normalmente descia em direção à praça nas manhãs de domingos, restaram vendedores desconsolados.  Para mim o dia estava perfeito, mas um chuvisco começou a cair e tive que procurar abrigo, praguejando por sair desprevenida. Cruzei guarda-chuvas apressados e me protegi embaixo de uma marquise. Em dez minutos estava de volta à rua. No caminho olhei vitrines. Diante do espelho de uma delas vi olhos famintos. Sem pudor, chorei. Queria mesmo era ter meus vinte anos de volta, ser senhora de mim sem ser e vaguear entre desejos e conquistas banais. A vida, no entanto, me reservou o menu de sempre - rugas, dores e solidão. Encontrei um conhecido, ele me falou algo e eu respondi “Sei não”. Uma música suave chegou de um apartamento uns dois andares acima e eu ali, sem saber de mi

ALGUMAS REFLEXÕES POÉTICAS

Angela Fleury  Hoje sou assim, amanhã já não mais. Sinto, mas já não sinto mais, gosto e desgosto, quero e já não quero mais! Silenciosamente pensamentos me confundem incessantemente, minhas próprias atitudes me surpreendem, convivo com conflitos intermináveis, ora é assim, ora é assado. Verdadeiros e heroicos combates entre domínios opostos. A vida, afirma sabiamente o poeta, existe através de contradições, através de uma constante tensão. Afaste-se para que possa se aproximar, mova-se para o oposto, para então, poder retornar. A vida persiste através de um movimento constante, qualquer coisa fixa e estabelecida está morta, estar vivo é mover-se entre os opostos, tudo está crescendo, movendo-se, transformando-se, num eterno devir.  Se observarmos a vida, a nossa volta, veremos que há contradições em todo lugar e talvez não haja nada de errado na contradição, ela às vezes pode parecer insuportável porque vai de encontro à nossa mente lógica e racional, mas para o p

OS CACARECOS

Elaine Morais Hoje por força do destino abri uma caixa de cacarecos. Encontrei cacarecos tão ridículos ali dentro que achei graça de mim. O brinco esquerdo de um par perdido, tampões de orelha, um batom seco. Todos esperando eventual uso. E ri da crença nos cacarecos úteis. Então abri outra caixa menor ainda. Encontrei cacarecos tão ínfimos ali dentro que senti carinho por mim. Miçangas de uma pulseira arrebentada, um pedregulho, uma estrelinha de plástico. Todos eles sem uso. E chorei de carinho pelos cacarecos inúteis. Era tão inexplicável guardá-los que senti saudades de mim. Saudade da época em que guardar cacarecos era natural. Saudade da doce inocência de quem nunca passou por grandes perdas.

A ARTE DA PERDA

Vaneska M. Depois de algum tempo de vida, a vida é de perdimentos. Assim fui alertada, quando ainda não era tempo de perder. A tantas coisas o perder é inerente, que perdê-las nem chega mesmo a ser um grande infortúnio. A arte da perda não é difícil de dominar. Perde-se algo a cada dia. Perdi cinco amores eternos. Tempo demais em discussões ordinárias. Uma camiseta preta; vinte e sete guarda-chuvas; duzentos e trinta e três pés de meia, algumas dúzias de brincos. Perdi as chaves de casas que também perdi. Perdi a conta das coisas que perdi, mas coisas são só coisas. Só servem pra tropeçar, ouvi no rádio. A esperança eu perdi uma vez. Avós, tios, vizinhos. Amigos cedo demais. Amigos insepultos. Perdi convívios fundamentais. Perdi contos, histórias, poemas, embalando gente que também perdi. Perdi metade da minha gentileza. Humor e banalidades. Perdi distâncias perto de mim. Duas bicicletas e a coragem de bicicletear. Perdi pudores, recatos, medidas. Perdi o medo do calendário que min

VOO BÁSICO

Maria Júlia Para saltar, eu tinha que levantar a asa delta, e correr para o cume. O céu era de puro anil. Não havia desculpas para voltar atrás. A não ser a velha insegurança. A cadeia de maus pensamentos começou, partiam do cérebro e se alastravam pelo corpo adentro. Uma dorzinha ansiosa se instalou no estômago e percebi que a calma que procurava sentir era pura imposição. Tentei respirar fundo, não deu certo. A cada inspiração vinha a expiração, apressada e irregular. Ah, a vida! Para que me comprometia com o desconhecido? Para que inventava situações complicadas? Para que procurava desafios o tempo todo, me envolvendo em bravatas que não faziam parte do meu feitio? Após a breve aula teórica e o treinamento sobre os procedimentos, a dor no estômago se fez acompanhar de uma taquicardia ameaçadora. Minha garganta estava ficando seca, as mãos, frias e trêmulas. O instrutor fez uma inspeção no equipamento, estava tudo certo: asa, alça, conexões. O único senão era eu, indeciso e

DONA ROSALVA

Eliana Gesteira Era uma mulher baixa, gordinha e também muito ágil. Seu nome surge de um mundo longínquo, onde havia muitas tarefas a cumprir e também horários rígidos para rotinas como comer, tomar banho e dormir. Da lembrança surgida, tento dar um desconto aos traumas que se fixaram em mim como uma tatuagem da qual só comecei a aceitar à medida que os anos se distanciavam e a marca se tornava indelével. Falo de minha professora do primário, Dona Rosalva. Naquele tempo de castigos, reprimendas e decorebas, Dona Rosalva era soberana. Sua didática consistia nas leituras silenciosas, na tabuada mil vezes repetida e na conjugação de verbos cantada em uníssono na sala. Se por descuido algum aluno ousasse desafiar sua autoridade, era “convidado” a ficar com a cara colada no quadro negro ou a andar sozinho de um lado para outro repetindo trechos da lição perdida. Ao final da manhã de aula, a nossa saída se condicionava à resposta correta da arguição diária sobre multiplicações ou v

MEU AMIGO DE TOURO

Vaneska M. A depender da boa vontade dos astros, jamais deveríamos ter nos aproximado: meu amigo de elemento terra tem os dois pés bem fincados nela. Eu, bicho doido correndo sem rumo. Metade gente, metade cavalo. Metade desespero, metade aflição. Metade gargalhada, metade dramalhão. Metade incêndio e a outra também. Como posso explicar o tanto que gosto dele? Talvez por tudo que me falte. Porque ele seja sábio, prático, resolutivo. Porque me segure na terra quando me disperso no ar. Talvez porque eu goste quando ele sorri. Talvez porque longe dele estou sempre um pouco sozinha. Meu amigo de touro é todo ética. Respeita as mina. Entende as mina. As mais sacanas, as presumidas santas e as putas assumidas. Gosta delas. Ele só vê gente. Um Bukowski sem medo de ser decente. Ele não fura fila. Não sonega imposto. Não explora o trabalho de ninguém. Não paga propina. Não quer levar vantagem. Cumpre as leis de trânsito. Não recebe troco superfaturado. Ele não dá jeitinho. Ele

POEMINHA SOBRE A AUTOESTIMA DA MULHER BRASILEIRA (OU UM PEDIDO DE DESCULPAS POR EXISTIR)

Julia V. Para minha tia Nádia Sou macumbeira, converso com entidade, venero estátuas, sigo conselhos de pessoas inspiradas por espíritos. Mas meu coração é bom. Sou feminista, pela legalização do aborto. Esquerdista, pelos direitos dos pobres, dos excluídos, das minorias, de toda aquela gente que você acha chata e que atrapalha o teu sono, gosto é delas. Pode acreditar quando digo: minha alma é boa. Sou separada, não tenho marido, faço sexo - quando faço - é só por prazer, porque amar (e ser amada) está difícil. E nem venha me dizer que é porque não sou bonita o suficiente para "prender" um homem, já ouvi muito isso, cansei, mude a playlist. A verdade é a seguinte: apesar de tudo isso, sigo sendo uma pessoa de coração e alma boa.

TIPOS DA MINHA VIDA DOMÉSTICA

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Maria Júlia Saskia era alta, forte, loura, de cabelos cacheados, olhos azuis pálidos e arregalados. Sentada ali no meu sofá ao lado do marido, aparentava timidez e falta de traquejo. Parecia um tipo saído dos quadros de antigamente, mais precisamente, a Imperatriz Leopoldina. Após uma sessão de chá com biscoitos e as perguntas usuais, resolvemos contratá-la como “ajudante”, a palavra aqui usada para as domésticas. Combinamos que ela viria umas horinhas por semana limpar o apartamento e cuidar do meu filho. O meu parco holandês não contribuía para uma comunicação espontânea. Eu não sabia lidar direito com ela, estava me iniciando nos estranhos rituais de outra cultura. Saskia ia e vinha, trabalhava bem, sempre calada e séria, não queria muito contato comigo. De repente, avisou que não queria mais continuar lá em casa. O ambiente não era aconchegante e ela se frustrava com a preferência que meu filho claramente demonstrava ter por mim. Sentia-se simplesmente rejeitada. Foi a

ECLESIASTES PUNK

Julia V Há tempo de se misturar, de se envolver, de estar com o próximo. E há tempo de se recolher, de dizer "até já", de fechar a porta, de sentar sozinha na praça. E de olhar o mar... Há tempo de chorar, de esfolar os olhos, de gritar de dor, de se arrastar pela vida, de sentir o peso. E há tempo de se libertar, de dizer "basta", de jogar os remédios todos fora, de gritar "já foi, já passou, já era". Há tempo de tudo nesta vida. Até de não ter tempo.

FRESTA PARA O INCONSCIENTE

Lidia liacora Um dia...seu sonho teve uma outra qualidade. Antes mesmo de abrir os olhos, ela sacudiu seu companheiro que dormia ao lado.   "Fui mordida por uma lontra!", disse, com ênfase , embora nao totalmente acordada.  Minutos depois, já desperta, pensou no sonho e ficou bastante surpresa: a palavra "lontra" nao fazia parte de seu vocabulário e nem lembrava de já ter visto tal bicho! No entanto, era muito nítida a cena : o animal com as unhas compridas, cravadas no antebraço dela, espetando-lhe a carne. Os olhos, grandes e brilhantes, cravados nos olhos dela.  Não era olhar de maldade, mas um olhar atento. E nao era uma "mordida", como falara ao companheiro. Lembrava ainda que o animal tinha o pelo marrom avermelhado, meio reto, tipo cabelo alisado e sem caimento. Ela nao sabia o que fazer, se puxasse o braço, podia se ferir muito... Nessa indecisão, acordou. Ficou o dia todo matutando: como podia sonhar com uma lontra, um animal que ne

LETRAS E SONHOS

Elisa Sharland As letras vão preguiçosamente sobrevoando o papel, até que de repente, a primeira começa a pousar  e, suavemente se aninha em um lado do papel. Olhando para ela agora, parece com uma criança que, deitada no chão, folheando uma revista, finge ler. Com seus pezinhos para o alto, deitada de bruços, presta muita atenção aquelas páginas que estão à sua frente mas, não sai do lugar. Assim também a letra, observando o papel, à espera de alguém que lhe dê algum sentido. Não se move, talvez sentindo a pressão de alguma expectativa que a está a observar. Precisa ter alguma reação para dar continuidade ao seu primeiro impulso mas, nada acontece. A letra insiste em permanecer na sua solidão e a criança, em sua ilusão. Ambas, se abstraem do mundo e deixam fluir o seu pensamento cada uma com seu sonho, cada uma com sua história. Onde vão parar? _ Não sei. Cada uma está em seu lugar, isoladas, mas quem sabe, se ambas, num impulso momentâneo, se juntam e d