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Mostrando postagens de dezembro, 2015

O MAL AMADO

Sonia Andrade                     A noite quente, sem brisa para amenizar o calor, era um convite ao ar condicionado. Depois de um dia inteiro de visita aos pontos turísticos da cidade, seria preciso desfrutar de uma noite tranquila na temperatura amena, climatizada. Exaustos, dormimos profundamente, alheios aos ruídos externos. Acordamos tarde, de olho no relógio, a tempo de não perder o café da manhã, um dos pontos fortes do hotel. Tudo parecia igual ao dia anterior, até o momento em que olhei pela janela   e percebi algo estranho. -- O que está acontecendo aqui? -- O quê?- ele perguntou, tentando entender a pergunta. -- Parece incêndio. Tem uma escada  de bombeiros encostada à parede do hotel – esclareci. Ele pareceu não acreditar. Como já diziam os antigos, onde há fumaça, há fogo. E não havia sinal de fogo por perto. Saímos do quarto e, no corredor, encontrei vários bombeiros rindo, animadamente. A causa da visita, seja lá qual fosse, já tinha acabado e eles e

Jurandyr de Oliveira Hoje entendo como minha progenitora teve que ser cuidadosa, escolhendo para depositar seus ovos em lugar pouco acessível - debaixo das folhas! O primeiro sentimento que lembro como parte da minha efêmera existência foi o de despertar com uma fome insaciável. Meu corpo movendo-se num ritmo cadenciado sem nenhum esforço . A mente vazia, só o resplendor do verde comigo, se fundindo. E a umidade de algumas gotas de sereno, sobre o aveludado das folhas. São poucas as memórias daquela época.  Movendo-me, descobri que apesar de ter adquirido aos poucos, tamanho e algum peso, podia caminhar em cima ou embaixo das folhas, sem cair. Com o tempo, era tanta a habilidade , que podia estar com somente parte do corpo pegado às folhagens e o resto ao ar.  Podia enroscar-me deliciosamente ou balançar-me. Em segundos, o mundo virava literalmente de cabeça para baixo e um azul brilhante invadia o meu campo de visão.  Os delicados fios que sou capaz de produzir, me

QUE HORAS ELE CHEGA?

Eliana Gesteira  A luz da manhã entra pela janela e cai direto nos olhos de Francisca. Ela desperta e imediatamente se volta para o lado. O lençol no chão e a cama vazia não a surpreendem. Na mesinha do canto um relógio mudo a faz levantar num salto. Prende o cabelo em coque e coloca no corpo franzino o vestido azul claro, procurando disfarçar uma ponta desfeita. Sente uma ligeira tonteira e mais uma vez jura que amanhã irá ao médico. Precisaria, claro, pedir uma folga à Dona Míriam, que fará cara de pena com um “sinto muito”, seguido de um “logo amanhã!?”. Mas afasta o pensamento, afinal não quer ser ingrata com a patroa. Toma café, desce as ruas estreitas e chega ao asfalto. Para na banca perto do ponto, lê as notícias que balançam em jornais desajeitados. Atravessa a rua, dá sinal para o ônibus e se espreme entre os passageiros. Desce, corre e pega o elevador de serviço. “9 e 15 Meu Deus!”. Chega à noitinha, sua casa está em silêncio e às escuras. Francisca anda devagar p

CHAPEUZINHO DE LINHA

Lidia  Detesto, às vezes, ter que ir à rua/ preferia ficar e resolver o problema dessa impressora, que já me fez perder tanto tempo/ estou sozinha em casa e gosto de ficar em casa quando está tudo silencioso/ Vá lá que seja!  quando passei em frente ao jornaleiro, tive certeza de que minha cabeça está tumultuada mesmo/ li na manchete "navalhada no cenário"/ olhei melhor e estava escrito "maravilha de cenário", com referência à música da Império Serrano/ É, tá feia a coisa! / Segui em frente, direto ao banco, chateada por ter que pagar duas contas, com dinheiro emprestado do próprio banco (cheque especial) / detesto dívidas! / no caminho, bem ao lado do ponto de ônibus, na Voluntários da Pátria, em frente à uma agencia bancária, vejo a cena: o mendigo atravessado "béim" no meio do caminho, dormindo com a boca aberta, braços abertos e...braguilha aberta! / o passarinho em pleno voo, formando um angulo, absolutamente reto, em relação à barriga

QUEM TEM ALMA NÃO TEM CALMA*

Vaneska M. Dura é a vida dessa gente que tem excesso de alma. Esses seres que sentem demasiado. Que não mergulham raso. Que não entendem de simplicidade ou leveza. Que são íntimos de obscuros. Que levam tudo no fio da navalha. A eles, toda minha ternura. Como não admirar essas pessoas que sempre ouvem mais do que se diz: uma entonação; uma pausa; um suspiro; um baixar de olhos – tudo tem mil significados. Que sempre leem mais do que se imaginou escrever: a secura do ponto; a pretensão do ponto e vírgula; o exagero da exclamação; o descompromisso das reticências. Que têm olhos capazes de enxergar além do espectro visível.  Como não estimar quem é capaz da maior das humanidades – entender a tua dor. Porque essas pessoas podem senti-la como se sua. Por esta razão, um de seus talentos é uma escuta sempre qualificada e cheia de compreensão e envolvimento. Quem mais entenderia até mesmo a tua palavra sufocada? Como não respeitar esses seres que amarguram indecisões, pois têm