Postagens

Mostrando postagens de 2017

Ela e Arnaldo

Imagem
Vaneska M. Terça-feira normal, de uma semana comum, de um mês ordinário. Ela pega o ônibus de sempre, destino: trabalho. Não usual mesmo só o recém adquirido hábito de acompanhar-se   do Arnaldo pra espantar o tédio do viagem.   Arnaldo, recém-organizado, na playlist do celular tinindo de novo. Ele canta baixo pra ela, num sonzinho quase de vitrola: _ “ela quer viver sozinha sem a sua companhia e você ainda quer essa mulher...” Surge talvez um saxofone, o som aumenta de repente. Ela e Arnaldo vão começar o animado bate-papo! Aquele instrumento de comunicação, porém, não se restringe à prosa com Arnaldo. O telefone toca. Toca a música. Como atender se Arnaldo ainda tá ali? Num ímpeto desastrado, saca os fones do aparelho. O som íntimo e reservado toma conta do ônibus inteiro: ­_”ela goza com o sabonete não precisa de você ela goza com a mão não precisa do seu pau” _Porra, Arnaldo! Canta baixo! Para de cantar! Não me core de vergonha. Como eu deslig

UNS TROÇOS

Maria Júlia Personagens: policial- detida - intérprete.  Cena: a delegacia central de Amsterdã. Uma mulher jovem, magra, morena, com um bebê de poucos meses no colo. Um homem, no final dos trinta, recostado numa mesa. Uma moça de óculos sentada na frente dos dois. -Moça, pergunta para ele porque estou aqui. -Moça, diz para ela que quem começa com pergunta aqui sou eu e mais ninguém. -É só ele que começa com perguntas, você espera para responder. A mulher se remexe na cadeira e encara o policial: -Tá certo mas meu filho tem hora, não tá vendo que ele tá nervoso? -Diz para ela responder tudo certinho para poder ir embora. Explica que se ela não quiser depor contra o marido, a lei não obriga. -Depor o quê? -Falar contra seu marido. Muchochos: -Não vou falar nada, nem contra nem a favor, depende . -OK, pergunta o que é que aconteceu na terça-feira dia oito, de tardezinha. -A gente estava descansando, de repente, a polícia entra lá em casa, joga tudo no chão,

COMO QUISER

Eliana Gesteira – Vou me casar. – Como!?… acabei de sentar, você me convida…ah, isso agora! Garçom, traz dois cafés. Você quer!? Não? Um café. Forte. – Sim, pai, vou me casar. E com uma pessoa que, sei, não vai aprovar. – Quem é essazinha que você arranjou para casar, João? – ... é… atendente numa loja, não é como nós, trabalha para pagar os estudos, mora...Ah, pai, Dani... gentil, inteligente e nós nos amamos. – E ela sabe quem você é, meu filho? – Não. Ainda não contei. – Pois então você desconfia dela. – Não, não é isso, só preciso de um tempo para contar. – Ah...entendo. É por isso que casamos com nossos iguais. – Mas, pai... – Ela sabe que você nunca trabalhou? – Não. Por favor, pare. Está sempre me colocando na parede…. Amanhã mesmo vou à empresa. Começo amanhã, está bem? – Ah, meu filho, amanhã. Sempre amanhã, amanhã. O amanhã é para jovens. Jovens pensam que nunca vão morrer. – Vou amanhã. É verdade. Prometo! – Olha, filho, estou cansado de su

SERÁ QUE A VIDA É SÓ ISSO?

Imagem
Angela Fleury Diálogo platônico em uma caverna contemporânea: --- Em uma habitação subterrânea em forma de caverna, com uma entrada aberta para a luz, estamos todos acorrentados bem no fundo, virados para uma parede, incapazes de voltar a cabeça. Você já percebeu isso? Com os pés e mãos amarrados, algemados nas pernas e nos pescoços, estamos incapazes de reagir, estamos todos imobilizados de tal maneira que só nos é permitido permanecer no mesmo lugar e olhar em uma única direção. Nada parece fazer sentido, mas mesmo assim há uma apatia geral. Parecemos estar definitivamente absortos pelo desconfortável espetáculo das falsas imagens, mas há de chegar uma hora em que tudo isso já não bastará mais. É certo, porém, que apesar de calados e encarcerados estão todos com o peito apertado, a beira de uma violenta e barulhenta explosão. Nada mais atual do que esta visão de Platão, para espelhar nosso tempo contemporâneo, você não acha? --- Você acredita mesmo que uma pessoa nessas

O SISTEMA DO NOSSO DIÁLOGO

Imagem
Carolina Geaquinto — Foda trabalhar com a recém senhora ex. E se cobrar ser fodão e não sentir nada. — Foda mesmo... Mas vocês não tinham voltado? — Tínhamos... Segunda da semana passada. Domingo por telefone. Uma segunda fofa. Uma terça legal. Na quarta o pau comeu de novo. Discutimos muito. — Que pena... — disse Z quase imperceptível, mas Y mal ouviu e logo emendou: — Ou melhor, sempre discutimos muito. Na quarta, fomos embora tristes, mas ainda sem forças pra mandar se foder. A quinta continuou com esse clima de enterro, íamos fazer algo leve que não exigisse demais de nossos espíritos. Porém um problema de trabalho causou uma desconfiança acerca da minha pessoa e aí o pau comeu.  Nos primeiros dez minutos a sós. Inviável —– Y destilou seu drama. — Então vocês terminaram? — disse Z, cobrindo sua ansiedade com uma fina camada de empatia. Y parecia estar no modo automático: — Mesmo assim continuamos com o programa e fomos a uma confeitaria. É isso mesmo: o pau comeu

EDUCAÇÃO DOS SENTIDOS

Imagem
Mônica Lobo (para Rubem Alves) Veja que bela cabeleira dourada! Isso aí não vale nada! Como falar assim de um ipê?! A vassoura não é por conta de você! As flores caem, caminhamos sobre o sol! Suas ideias são puro besteirol! Não vê a alegria brotando destas cores? Vejo é que divergimos em muitos valores Você bebe tolices e poesias de canudo Eu mastigo a realidade, vomito tudo Nunca tive tempo a perder Foi assim que aprendi a viver Não vejo a hora de ver um progressista Arrancar tudo isso da minha vista! Minha alma celebra a doçura e a criatividade Me entrego sem pressa ao prazer da alteridade A poesia não tem lugar, tempo nem história É um carinho atemporal feito na memória Minha utopia é ter a senhora bem quista Doar à sua face meus olhos de artista

11 SUGESTÕES PARA FICAR DE PÉ, SEGUIDAS DE UMA SUGESTÃO EXTRA

Imagem
Carolina Geaquinto    (Israëlis Bildermanas, Lagny, 1959)       1) De pé, pernas estendidas, dobre o joelho direito, balance o pé ligado a esse joelho para frente e pouse-o sobre um ponto de apoio ascendente. Incline o quadril para frente e para cima, solte a perna esquerda do chão e dobre também o joelho desta perna, como o da outra, mas agora pouse o pé um pouco acima, sobre outro ponto de apoio ascendente. Repita os movimentos, sempre alternando pernas, joelhos e pés até chegar a um nível onde não haja mais apoios ascendentes, apenas apoios planos. Nesse lugar plano, deslize o pé direito para frente e o esquerdo para o lado. Tombe o tronco para trás. 2) Antes de querer ficar de pé, tente embrulhar seu equilíbrio em uma folha de papel, como para presente de Natal ou de aniversário. Toda vez que quiser ficar de pé, desembrulhe seu equilíbrio e escreva no papel o que sente. Faça isso durante duas semanas seguidas e conseguirá diminuir seu equilíbrio, bem como desenvo

NAUFRAGAR É NÃO PARTIR

Angela Fleury Observar como estou resistindo ao outro e a mim mesmo, como lido com o fora e com o dentro. Perceber o quanto estou reagindo e como estou sempre em relação a alguma outra coisa diferente de mim mesmo. Considerar a experiência das associações dos conteúdos que circulam em volta de vários núcleos, em volta dos mais diferentes “eus”.   Refletir. O que estou escolhendo? A que deus dentro de mim estou atendendo? O que tiro da frente para não atrapalhar? O que acolho e o que desacato? A que devo atentar? O que devo velar? O que outro está preferindo? A quem o outro está escutando? Entender que as energias entre o eu e o outro quase sempre surgem frouxamente ligadas. Meditar sobre esse jogo de indeterminações de intensidades variadas que estão quase sempre em contradição. Aprender que este navegar nem sempre terá os ventos a favor. Aceitar que uns são tufões, que encrespam o mar e aumentam o tamanho das ondas e elevam o nível das águas, e que alguns outros, ao co

AINDA NÃO

Aspiramos a verdade e só encontramos em nós incerteza. Pascal Eliana Gesteira Era domingo, final de tarde de um dia ensolarado, e Amanda descansava no banco do jardim de casa num momento de solidão desejada. Apesar da quase indiferença, notou uma borboleta amarela que voava sobre sua cabeça e também a luz do sol filtrada em suas asas. “Ah, a vida”, disse, e um leve tremor lhe percorreu o corpo. Então levantou-se e passou a acompanhar o voo do inseto em pé. Após girar a cabeça de um lado para o outro, mudou de posição e lentamente esticou o braço, colocou os dedos em pinça e zás! A borboleta foi aprisionada em um copo emborcado. Por alguns minutos ou uma eternidade, conforme o ponto de vista, suas asas aflitas encontraram paredes de vidro diante de olhos grandes e interessados. Não, Amanda não era má. É que estava cansada de ver a vida e a alegria ostentadas aos borbotões, mesmo entre aqueles que se diziam infelizes ou entre os que asseguravam “o mundo é um horror”. Mas p

A DESEQUILIBRISTA

Resta esse constante esforço para caminhar dentro do labirinto Esse eterno levantar-se depois de cada queda Essa busca de equilíbrio no fio da navalha Essa terrível coragem diante do grande medo, e esse medo Infantil de ter pequenas coragens. O Haver Vinicius de Moraes Conselhos, forças, ameaças. O que o mundo espera da gente é equilíbrio. Em nome de uma vida mais serena, uma boa dose de sensatez, relações harmoniosas, paz de espírito. Desafortunadamente o que tenho a oferecer ao mundo é minha infinita incapacidade de me meter em medidas, encaixar em padrões, me aprisionar em parâmetros. Equilíbrio pressupõe um sistema de forças que se compensam e se anulam reciprocamente. Não vejo como isso possa ser algo sempre bom. Nesse constante anular-se, gente como eu só vê um vazio enorme. Falta-nos o discernimento para entender sua grandeza, qualquer que seja. Equilíbrio também é estado daquilo que se mantém sem alterações, constante. Nada mais assustador para alma

A JUSTA MEDIDA: O SOM DE MULLIGAN E PIAZOLLA

  Years of solitude    Anos de soledad   https://www.youtube.com/watch?v=FDwahjiQ_5g live em Roma Maria Júlia ESCUTEM: A música salta de dentro do seu peito e voa para longe, ele sai correndo atrás, sem saber para onde, o saxofonista de bela juba branca ao vento e o seu saxofone plangente. Nos caminhos do sul, encontra o bandeonista, e juntos choram as respectivas solidões perante o público italiano. O ano é de 1974, o local, um teatro de Roma. O saxofone inicia cantando a solidão como o que existe de mais real, como parte da condição humana, do ser na sua individualidade existencial.  A solidão de cada um, dentro das próprios sentimentos, experiências, da precariedade da vida, da finitude, ressoa no teatro. O público desolado, piangere, piangere... Então, o bandonéon acompanha o saxofone. Também verte suas lágrimas, mas a seguir, procura um movimento próprio, independente, para sobrepor as lamúrias do outro, constantes e iguais. E reforça o ritmo, dá força ao grito, m

A MEDIDA DO AMOR

Imagem
Mônica Lobo Um dedo, um palmo Uma foto, um quadro Uma vida, um hiato Uma casa, um gato Dois olhos, um laço Duas mãos no espaço Dois pés, um passeio Duas dores ao meio Que medida de alegrias, em tempo sem escala, nos faltou por tantos dias feito corte de navalha? Tremores com suores frios Adereços cardinais deslumbrantes Nossas folhas descendo fortes rios As últimas mais secas que as de antes Que medida de amores, em almas sem defesa, nos privou de mil alvores feito força sem leveza? Certa noite de vento e encanto A música deu seu passo Na ponta dos pés, entretanto Marcou no peito seu compasso Descobrimos no amor real Em face o ardor mais bonito Na aurora boreal A medida do infinito

OS PRIMEIROS MINUTOS

            Angela Fleury Talvez seja a hora mais difícil, uma incrível mistura de sentimentos indefinidos. Um momento de passagem de um mundo para o outro, que vai de uma misteriosa imprecisão, passando aos poucos para uma nebulosa penumbra até que se descortina em uma luz clara a qual os olhos nem sempre conseguem suportar. Tudo se passa em câmera lenta, reina um desconhecimento, uma desconfiança do que possa ou não vir a ser. Um tatear, como se eu estivesse entrando em um quarto escuro ou, ao contrário, saindo desconfiadamente na direção de uma forte luz. Cenários que vêm e fogem da mente, imagens desconexas que escapam e que insistem em reaparecer que se misturam e se embaralham que são turvas, que se ocultam e se mostram sem que eu tenha o tempo para lhes dar um sentido.  Estou em pleno espaço entre, nem de um lado nem do outro, em pleno transcurso. Aos poucos, bem aos poucos, mas ainda de maneira desconcertada sinto que vou saindo de um lado e entrando no outro, apes