Postagens

Mostrando postagens de novembro, 2017

Ela e Arnaldo

Imagem
Vaneska M. Terça-feira normal, de uma semana comum, de um mês ordinário. Ela pega o ônibus de sempre, destino: trabalho. Não usual mesmo só o recém adquirido hábito de acompanhar-se   do Arnaldo pra espantar o tédio do viagem.   Arnaldo, recém-organizado, na playlist do celular tinindo de novo. Ele canta baixo pra ela, num sonzinho quase de vitrola: _ “ela quer viver sozinha sem a sua companhia e você ainda quer essa mulher...” Surge talvez um saxofone, o som aumenta de repente. Ela e Arnaldo vão começar o animado bate-papo! Aquele instrumento de comunicação, porém, não se restringe à prosa com Arnaldo. O telefone toca. Toca a música. Como atender se Arnaldo ainda tá ali? Num ímpeto desastrado, saca os fones do aparelho. O som íntimo e reservado toma conta do ônibus inteiro: ­_”ela goza com o sabonete não precisa de você ela goza com a mão não precisa do seu pau” _Porra, Arnaldo! Canta baixo! Para de cantar! Não me core de vergonha. Como eu deslig

UNS TROÇOS

Maria Júlia Personagens: policial- detida - intérprete.  Cena: a delegacia central de Amsterdã. Uma mulher jovem, magra, morena, com um bebê de poucos meses no colo. Um homem, no final dos trinta, recostado numa mesa. Uma moça de óculos sentada na frente dos dois. -Moça, pergunta para ele porque estou aqui. -Moça, diz para ela que quem começa com pergunta aqui sou eu e mais ninguém. -É só ele que começa com perguntas, você espera para responder. A mulher se remexe na cadeira e encara o policial: -Tá certo mas meu filho tem hora, não tá vendo que ele tá nervoso? -Diz para ela responder tudo certinho para poder ir embora. Explica que se ela não quiser depor contra o marido, a lei não obriga. -Depor o quê? -Falar contra seu marido. Muchochos: -Não vou falar nada, nem contra nem a favor, depende . -OK, pergunta o que é que aconteceu na terça-feira dia oito, de tardezinha. -A gente estava descansando, de repente, a polícia entra lá em casa, joga tudo no chão,

COMO QUISER

Eliana Gesteira – Vou me casar. – Como!?… acabei de sentar, você me convida…ah, isso agora! Garçom, traz dois cafés. Você quer!? Não? Um café. Forte. – Sim, pai, vou me casar. E com uma pessoa que, sei, não vai aprovar. – Quem é essazinha que você arranjou para casar, João? – ... é… atendente numa loja, não é como nós, trabalha para pagar os estudos, mora...Ah, pai, Dani... gentil, inteligente e nós nos amamos. – E ela sabe quem você é, meu filho? – Não. Ainda não contei. – Pois então você desconfia dela. – Não, não é isso, só preciso de um tempo para contar. – Ah...entendo. É por isso que casamos com nossos iguais. – Mas, pai... – Ela sabe que você nunca trabalhou? – Não. Por favor, pare. Está sempre me colocando na parede…. Amanhã mesmo vou à empresa. Começo amanhã, está bem? – Ah, meu filho, amanhã. Sempre amanhã, amanhã. O amanhã é para jovens. Jovens pensam que nunca vão morrer. – Vou amanhã. É verdade. Prometo! – Olha, filho, estou cansado de su

SERÁ QUE A VIDA É SÓ ISSO?

Imagem
Angela Fleury Diálogo platônico em uma caverna contemporânea: --- Em uma habitação subterrânea em forma de caverna, com uma entrada aberta para a luz, estamos todos acorrentados bem no fundo, virados para uma parede, incapazes de voltar a cabeça. Você já percebeu isso? Com os pés e mãos amarrados, algemados nas pernas e nos pescoços, estamos incapazes de reagir, estamos todos imobilizados de tal maneira que só nos é permitido permanecer no mesmo lugar e olhar em uma única direção. Nada parece fazer sentido, mas mesmo assim há uma apatia geral. Parecemos estar definitivamente absortos pelo desconfortável espetáculo das falsas imagens, mas há de chegar uma hora em que tudo isso já não bastará mais. É certo, porém, que apesar de calados e encarcerados estão todos com o peito apertado, a beira de uma violenta e barulhenta explosão. Nada mais atual do que esta visão de Platão, para espelhar nosso tempo contemporâneo, você não acha? --- Você acredita mesmo que uma pessoa nessas

O SISTEMA DO NOSSO DIÁLOGO

Imagem
Carolina Geaquinto — Foda trabalhar com a recém senhora ex. E se cobrar ser fodão e não sentir nada. — Foda mesmo... Mas vocês não tinham voltado? — Tínhamos... Segunda da semana passada. Domingo por telefone. Uma segunda fofa. Uma terça legal. Na quarta o pau comeu de novo. Discutimos muito. — Que pena... — disse Z quase imperceptível, mas Y mal ouviu e logo emendou: — Ou melhor, sempre discutimos muito. Na quarta, fomos embora tristes, mas ainda sem forças pra mandar se foder. A quinta continuou com esse clima de enterro, íamos fazer algo leve que não exigisse demais de nossos espíritos. Porém um problema de trabalho causou uma desconfiança acerca da minha pessoa e aí o pau comeu.  Nos primeiros dez minutos a sós. Inviável —– Y destilou seu drama. — Então vocês terminaram? — disse Z, cobrindo sua ansiedade com uma fina camada de empatia. Y parecia estar no modo automático: — Mesmo assim continuamos com o programa e fomos a uma confeitaria. É isso mesmo: o pau comeu

EDUCAÇÃO DOS SENTIDOS

Imagem
Mônica Lobo (para Rubem Alves) Veja que bela cabeleira dourada! Isso aí não vale nada! Como falar assim de um ipê?! A vassoura não é por conta de você! As flores caem, caminhamos sobre o sol! Suas ideias são puro besteirol! Não vê a alegria brotando destas cores? Vejo é que divergimos em muitos valores Você bebe tolices e poesias de canudo Eu mastigo a realidade, vomito tudo Nunca tive tempo a perder Foi assim que aprendi a viver Não vejo a hora de ver um progressista Arrancar tudo isso da minha vista! Minha alma celebra a doçura e a criatividade Me entrego sem pressa ao prazer da alteridade A poesia não tem lugar, tempo nem história É um carinho atemporal feito na memória Minha utopia é ter a senhora bem quista Doar à sua face meus olhos de artista