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Mostrando postagens de maio, 2016

LETRAS E SONHOS

Elisa Sharland As letras vão preguiçosamente sobrevoando o papel, até que de repente, a primeira começa a pousar  e, suavemente se aninha em um lado do papel. Olhando para ela agora, parece com uma criança que, deitada no chão, folheando uma revista, finge ler. Com seus pezinhos para o alto, deitada de bruços, presta muita atenção aquelas páginas que estão à sua frente mas, não sai do lugar. Assim também a letra, observando o papel, à espera de alguém que lhe dê algum sentido. Não se move, talvez sentindo a pressão de alguma expectativa que a está a observar. Precisa ter alguma reação para dar continuidade ao seu primeiro impulso mas, nada acontece. A letra insiste em permanecer na sua solidão e a criança, em sua ilusão. Ambas, se abstraem do mundo e deixam fluir o seu pensamento cada uma com seu sonho, cada uma com sua história. Onde vão parar? _ Não sei. Cada uma está em seu lugar, isoladas, mas quem sabe, se ambas, num impulso momentâneo, se juntam e d

DOIS IRMÃOS

Eliana Gesteira Olhos, só pálpebras, miram o chão. Às vezes abrem e vagam desinteressados. O dia passando e Cristina ali calada. Estava assim desde que ouviu: “Fica com ele! Tu, o menino e a casa. Tudo!”. Há dois meses, quando o cunhado João chegou, foi uma festa. Cristina fez carne assada, Pedro, o marido, comprou bebidas e o filho Marcelo era só alegria por finalmente conhecer o tio de quem tinha ouvido falar muito. A história que mais gostava era aquela em que o pai, ainda menino, assumiu a culpa pelo sumiço de umas cocadas que seriam vendidas na feira. Apesar da surra que levou, ele não entregou o irmão para a mãe,   mulher que criava sozinha dois meninos no cafundó do Judas. Os anos se passaram e o mais velho precisou ir para o sul trabalhar. Novamente juntos, Pedro quis poupar João do sufoco que passou ao chegar no Rio de Janeiro. “Pode levar o tempo que precisar pra encontrar trabalho. Não vai fazer serviço pesado e mal pago não”, disse, esperando que o ca

SILÊNCIO NA MULTIDÃO

Angela Fleury Há um silêncio no ar. Por toda parte, um silêncio que parece encarnar o espírito contemporâneo. Um sentimento de ruína, de fragmentação, de dúvida. Um sentimento de passagem, só não sei de onde para onde. Não há mais transmissões de experiências, estou sozinha, lendo um romance, no sofá da minha sala de estar.  Indivíduo urbano e solitário, impossibilitado de falar sobre a catástrofe. Incapacitado de transmitir ao outro a sua experiência. Atrofia da narrativa, desencontro e afastamento. Sem palavras, muda, assim como os combatentes que voltam do campo de batalha. Não há mais troca de experiências boca a boca. Quem encontra ainda pessoas que saibam contar estórias como elas devem ser contadas? Aonde estão os ouvintes? Que moribundos dizem hoje palavras tão duráveis que possam ser transmitidas como um anel, de geração em geração? Quem é ajudado hoje por um provérbio oportuno? Quem tentará, sequer, lidar com a juventude invocando sua experiência? Tudo mudou.

POR QUE ACABA O AMOR?

Vaneska M. Sempre segui o conselho de Drummond sobre a palavra amor: não facilito, não jogo no espaço, não emprego sem razão, não brinco, não espalho aos quatro ventos. Se melhor discípula fosse, sequer a pronunciaria. Fato é que morro de medo de tentar falar de amor. A sensação é de que quaisquer palavras que use o tornarão menor e vulgar. Muito mais por incompetência poética e filosófica, não ouso defini-lo.  Minha pequena arrogância aqui será indicar mal traçadas hipóteses sobre o porquê de seu fim. Os adeptos de sua faceta romântica dirão que ele não acaba. Se acaba não era amor. Os mais apegados dirão que ele se transforma. Eu acredito que o amor acaba. Repleto de si ele não se contenta com ser nada além de amor. O amor acaba porque gasta. Porque usamos sem moderação. Sugamos tudo. Roemos até o caroço. Lambuzamos a cara como se amanhã não houvesse. O pobre do amor fica sequinho e cai do pé. O amor acaba soterrado na casa própria. Atropelado pelo carro novo

TUDO QUE VICIA

Sonia Andrade Li outro dia que tudo que vicia começa com a letra C. Depois de pensar sobre o tema, descobri que a teoria faz algum sentido. Começando pelas drogas ilícitas, como crack e cocaína, passando para o cigarro e seus parentes próximos, cachimbo e charuto, indo para as bebidas como cachaça, cerveja e café, além da comida de que precisamos para viver, tudo começa com C e podem causar compulsão. Existem também coisas positivas associadas à mesma ideia. Conhecimento, cultura e criatividade, por exemplo. São vícios que nos fazem crescer, como ir ao cinema e ler crônicas de autores preferidos. Lembrei também dos ciclos da vida com seus correspondentes círculos de amizade e companheirismo. Cadeira de balanço na calçada para conversar e contar histórias. E o que dizer do calor de um colo, com carinho e cafuné? Chinelo caseiro, chupeta e cantigas de ninar. Cores e cheiros, como compota de caju cozinhando no fogo a carvão ou canjica com cravo e canela. Recorri a imagens evocadas por Zé

CHICO E SUAS MULHERES NO BONDINHO DE AMSTERDÃ

Maria Júlia No bonde elétrico que vai do bairro universitário ao centro da cidade, duas garotas brasileiras muito jovens, de vozes moduladas e sotaques sulistas, isto é, de articulação clara, érres nítidos e caprichados, comentam a obra de Chico, uma terra ainda incógnita para elas. Sentada bem atrás delas, faço tudo para não perder uma palavra.  -Você sabia que isso era dele? diz uma delas, e entoa baixinho:  Procurando bem Todo mundo tem... Sala sem mobília ... Goteira na vasilha Problema na família Quem não tem Só a bailarina que não tem – a outra faz o refrão. Bigode de groselha Calcinha um pouco velha Ela não tem _ Nossa, a Adriana Calcanhoto tem voz de criança!  _ Só a bailarina que não tem- repetem as duas rindo. _ Futucando bem...estou pensando no mestrado sobre as mulheres dele. Foi minha mãe que deu a ideia. Mas, cara, como é que a gente transmite o Chico em holandês? Como vou dizer, sem ficar brega: eu vou rasgar me

MÃE

Jurandyr de Oliveira Então ele a despertou gentilmente: -Mãe, mãe, te amo muito minha mãe. Já estou indo. E deu-lhe dois beijos nos cabelos brancos . Ela abriu os olhos e com uma expressão meio atordoada falou: Espera,...eu tenho que lhe falar algo. -O que foi mãe ? Perguntou ele curioso, porque pressentiu que se tratava de um sonho. -As crianças, onde estão as crianças? -As crianças? Ele retrucou baixinho. -Sim, as crianças... Nós não estamos juntos?  Pouco a pouco ela percebeu a própria confusão. Talvez o tivesse confundido com seu pai... -Mãe, fica com Deus. Eu estou voltando para o Panamá. Falou como tratando de situar-la um pouco. -Ahhh filho, você esta voltando... E repetindo a frase que repetia sempre como se fosse ao menos uma certeza registrada na mente, a única ancora entre tantos fragmentos dispersos. -Vem filho, ficar um tempo comigo!... Quando você volta? Vai com Deus e não demore muito para voltar. Te amo muito!... -Vai mãe, d

A FÉ

Julia V É ter nenhum calcanhar que te machuque. Apenas belos tornozelos para pôr enfeites.