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Mostrando postagens de julho, 2017

EU NÃO TE OUÇO, VOCÊ NÃO ME OUVE

Angela Fleury Animal acuado reage ao diferente.  Não quero ouvir. Não é preciso ouvir. Não é preciso ver. Não quero ver. Não é preciso ver o outro como alguém dotado de um significado, de um sentido que eu preciso desvendar, como alguém que talvez tenha uma necessidade que talvez eu possa ajudar. Não é preciso entender como cada um de nós possui a sua própria singularidade. Não, se o outro não repete exatamente o que eu espero, não quero nem ouvir, nem precisa falar, não vou te ouvir.  Perdi a alegria, não consigo mais me expressar livremente, minha cidade também está triste, estamos todos desolados, estagnados dentro de uma perplexidade já totalmente instalada.  Não é preciso ver a beleza da diversidade humana, a complexidade misteriosa de cada ser, não, não é preciso se indignar, não é preciso questionar. Não é preciso parar para prestar atenção ao outro, siga em frente, não é preciso olhar para o outro. Deixe o outro pra lá. Não preciso conhecer a sua historia, ne

NÃO É PRECISO DEIXAR MARCAS NA AREIA

Eliana Gesteira A rua estava silenciosa e iluminada pelos raios de sol que conseguiam romper folhas e galhos em abundância naquele pedaço de chão. O cheiro de cascas molhadas, que se descamavam de troncos úmidos, trouxe de volta a sensação de conforto e segurança misturada a de destruição e ruína. Era desconcertante, mas essas impressões ainda me assombravam depois de tantos anos de página virada. Cansada da caminhada, sentei numa pedra para apreciar a paisagem e também para visitar o passado. A primeira coisa que lembrei foi de uma mancha em forma de pássaro na parede do quarto de um hospital. Recordo agora das horas que passei com os olhos fixos na sombra que maculava a superfície branca e nua da enfermaria e de como, apesar de me atrair, aquela imagem me causava tristeza e aflição. Desse transe só saí quando vi meu empresário chegar. Ele me trazia apoio, esperança e um sorriso despreocupado: - Tudo vai ficar bem. Só precisa repousar e ficar quietinha por uns dias. R

PRA GENTE, FINALMENTE, CRESCER

Vaneska M. É preciso subir ladeiras no escuro. Descer ladeiras no escuro. É preciso subir e descer. Abandonar vertigens. Não ter medo do tempo. Para o que passou, gratidão. Para o que virá, entusiasmo. Para o que não para de correr, calma. É preciso encarar escolhas. Errar muito e enormemente. Acertar em silêncio. Absolver-se sempre. É preciso reconciliação: com nossos corpos, dores, fragilidades.  É preciso encerrar as buscas. Paralisar as escavações. Não tem nada no fim. Só mesmo caminhos e neles a plenitude. Total atenção aos caminhos. Sim, é preciso plantar árvores, flores, temperos. É preciso colher.  Aceitar quem são ou foram nossos pais e irmãos, ainda que para tanto seja necessária compaixão. Compreender que para muitos somos só necessários. Não martirizar-se por isso. Não duvidar de sentimentos genuínos, porque para tantos outros bastará o que somos. É preciso amar de novo, o novo. Reamar o mesmo amor. Desatar nós. É preciso, como aqueles

É PRECISO HAVER DIAS DIFÍCEIS

Carolina Geaquinto “O dia mais difícil da minha vida” parece tema de redação de volta às aulas, no mesmo tom de “minhas férias” ou “minha família”. Há qualquer coisa aí que sugere a expectativa certeira de uma narrativa que se acomoda, que se repete e se imprime a exaustão. O dia mais difícil da minha vida não foi o dia em que minha mãe morreu. Porque eu não me lembro desse dia. Eu não lembro quem me disse: “sua mãe morreu”. Eu não lembro onde eu estava, o que eu fazia. Todo mundo sabe o que estava fazendo quando aconteceu o 11 de setembro. Mas eu não sei nada sobre mim num dia da minha própria vida. Eu me lembro de vê-la no caixão, mas não sei se foi no mesmo dia em que ela morreu. Eu me lembro de vê-la no caixão com o vestido mais bonito que tinha, um vestido claro, meio champanhe, cheio de florezinhas rosas e lilases, há uma foto dela com esse vestido, posso te mostrar. Na foto ela está viva (as pessoas estão vivas nas fotos?). Eu me lembro da palidez disfarçada e da pe

...VIAJAR É PRECISO/ FICAR NÃO É PRECISO

Maria Júlia “O prazer que extraímos das viagens talvez dependa mais do estado de espírito com que as empreendemos do que do destino que lhes fixamos”. Viagem à roda de meu quarto - Xavier de Maistre (1763) Citações adaptadas à afirmação de Fernando Pessoa se tornaram lugar comum para todas atividades aprazíveis. Para ele, no entanto, esta sempre fora um ato de fé, uma verdade absoluta. Desde menino era seu desejo, incensado pelos livros de aventuras, aulas de história, geografia, literatura, e pela mãe, sempre insinuando que a grama era sempre mais verde do lado de lá, como querem os ingleses. Apesar de ser brasileira  Passou o período escolar lendo, relendo, sonhando, colecionando livros de viagem e amigos estrangeiros. Com eles se dava melhor do que com a prata da casa. Um passado com outros hábitos e condicionamentos, gostos e desgostos, idiomas, histórias, lhe parecia fascinante, misterioso, fora de série. O cotidiano era igualzinho, os códigos já conhecidos e senh

PRECISÃO DE PRECIPÍCIO

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Mônica Lobo É preciso um precipício Me jogar! Apreender o princípio do renascimento O erro incorrigível O instante anterior ao desassossego Naufragar é preciso Se molhar, se perder no mar Porque viver não é preciso É onda, vento, sol, trovoada! A precisão de um precipício É isso! Mas é preciso mais que um salto, um pulo, Um beijo roubado Um cão alado Que insanidade voar Sem saber das asas! Somente a doçura cega de um amor canino! Preciosa cauda a balançar Sem precisar! Por ser feliz, por despertar A vista de outros olhos Olhos líquidos de lagoa O afago, a companhia Inflar e derreter ar quente Língua pendente de tapete Quente, úmido, macio Tudo que é preciso Num abraço que te reinicia.