VOO BÁSICO
Maria Júlia
Para saltar, eu tinha que levantar a asa delta, e correr para o cume. O céu era de puro anil. Não havia desculpas para voltar atrás. A não ser a velha insegurança. A cadeia de maus pensamentos começou, partiam do cérebro e se alastravam pelo corpo adentro. Uma dorzinha ansiosa se instalou no estômago e percebi que a calma que procurava sentir era pura imposição. Tentei respirar fundo, não deu certo. A cada inspiração vinha a expiração, apressada e irregular. Ah, a vida! Para que me comprometia com o desconhecido? Para que inventava situações complicadas? Para que procurava desafios o tempo todo, me envolvendo em bravatas que não faziam parte do meu feitio? Após a breve aula teórica e o treinamento sobre os procedimentos, a dor no estômago se fez acompanhar de uma taquicardia ameaçadora. Minha garganta estava ficando seca, as mãos, frias e trêmulas. O instrutor fez uma inspeção no equipamento, estava tudo certo: asa, alça, conexões. O único senão era eu, indeciso e masoquista. Em vez de concentrar-me em verificar se o paraquedas de emergência e o capacete estavam à mão, pus-me a pensar nas estrofes da saudosa Cecília Meirelles:
Quem sobe nos ares não fica no chão,
quem fica no chão não sobe nos ares.
É realmente uma grande pena que não se possa
estar ao mesmo tempo em dois lugares!
Então vamos nessa? – bradou o instrutor. Me dá só um minuto, eu disse ainda parado, parecendo um falcão mal enjambrado e plebeu. É, minha vida toda tinha sido dominada por dúvidas. Nem cardápio de restaurante conseguia escolher. Depois de pedir um prato, ficava cobiçando o do vizinho. Para cada pró, eu apresentava um contra. Eu também nunca soube qual era o melhor: se isto ou aquilo. Jurei que era o último teste a que me habilitava, então, era fundamenal que passasse, se não, jamais recuperaria as sobras de auto-estima. Voar em linha reta era o meu objetivo, o grande sonho. O instrutor gritava as recomendações. Senti o bicho me levantando do chão à medida que eu corria. O falcão estava no ar, com dor de barriga e tudo. Lá embaixo, o Atlântico, agora e sempre. Amém.
Um dia ainda saltarei Maria Julia e sentindo a mesma dor de barriga! Saúde!
ResponderExcluirAcho que o fato de eu sentir exatamente as agonias e dúvidas do pré salto dizem bastante sobre a construção do texto, carregadinho de metáforas bonitas e bem construídas. Pulei junto!
ResponderExcluirVaneska