TALVEZ O ÚLTIMO DESEJO
Exercício coletivo da Roda - Raquel de Queiroz
"Pergunta-me com muita seriedade uma moça jornalista qual é o meu maior desejo para o ano 1950 (...). Me deitar numa rede branca armada debaixo da jaqueira, ficar balançando devagar para espantar o calor, roer castanha de caju confeitada sem receio de engordar, e ouvir na vitrolinha portátil todos os discos de Noel Rosa, com Araci e Marília Batista. Depois abrir sobre o rosto o último romance policial de Agatha Christie e dormir docemente no mormaço.
Mas não faço. Queria tanto, mas não faço. O inquieto coração que ama e se assusta e se acha responsável pelo céu e pela terra não deixa. De que serve, pois, aspirar à liberdade? O miserável coração nasceu cativo e só no cativeiro pode viver”.
Aspiramos à liberdade, mas as redes que aprisionam muitas vezes são as mesmas que nos embalam. As mesmas redes em que nos aninhamos confortáveis. Embora quase nunca esse conforto seja ausência de dor. Ele é só um conformar-se, um estar de acordo, um lugar estável. Acalentada nessa rede, eu perco a dimensão do descanso verdadeiro, só possível às almas genuinamente autônomas e abro a agenda: céus e terra aguardam minha importante decisão.
Aceitar um adiantamento para o próximo livro e vender meus sonhos de liberdade? Tudo o que eu mais quero, não me pode comprar o dinheiro, pensei. Chega de refexionar! Chega de tanta prudência! E agarrada estoicamente como um náufrago aquela nova ideia que de repente me atravessou mais que a mente, a própria alma; rasguei em três, a folha da agenda. No primeiro pedaço escrevi: Marrocos, no segundo Japão e no terceiro aceitar o adiantamento. Os três papelzinhos então transformados em pequenas esferas, chacoalhavam animadamente no centro de minhas mãos que em forma de concha, abrigava-os como sementes a serem lançadas a um solo onde só uma iria germinar. Maravilhada de pensar que havia criado para mim um novo sistema que conjugava o destino e o livre arbítrio, a mão de Deus e a do homem, sorri! ... Lenta e prazeirosamente desamassei o papel escolhido que dizia...
Não vi nada, fechei rapidamente os olhos, amassei o papel e preferi não olhar. Preferi me relacionar com a vida e com o desconhecimento que a vida é. Decidi respeitá-la justamente por se tratar de um mistério de grande intensidade. Não tenho a intenção de dominar as coisas da vida, prefiro respeitar a grandeza da natureza e reconhecer a impermanência de tudo a minha volta. Não posso negar meu corpo e minhas sensações, colocar tudo em um rolar de dados. Preciso mais do que nunca encarar o desconhecimento e o desamparo. Retorno, então, à indeterminação e à embriagues.
Dia seguinte, apesar da crise existencial da véspera, amanheci descansada. Fui até a varanda e a visão da frondosa jaqueira fez-me sentir segura, amparada, otimista. "De bem com a vida", como se diz. Olhei em volta e vi, sobre a mesinha, um pires com três bolinhas de papel. Estranho, lembrei perfeitamente dos pensamentos melancólicos que me fizeram amassar o papel sem ler. "Precisa tornar a vida mais divertida", diz meu lado solar e um pouco inconsequente. Resolvo então sim, colocar minha vida num rolar de dados. E vou em direção ao pires.
Mas, quando lá cheguei olhei para dentro de mim e pensei: _ hum... que tal desabrochar o verdadeiro que há em mim! E, esquecida da folha da agenda e das três bolinhas de papel, fui buscar o que há de melhor em mim para então me tornar solar e brilhante, com a luz fulgurante de meu ser, porque quando rabisco meus desenhos e escrevo meus textos, sinto o descanso em minha alma como se mansamente navegasse em um doce mar azul de ondas suaves e brisa leve. Pensei: _ isso sim, é a melhor sensação de liberdade!
Saboreando aquela sensação, permaneci por um instante ali em pé com a convicção de que o trabalho de criação era meu porto seguro e que escolher ao acaso não acalmaria a angústia que de tempos em tempos me assombrava. Mesmo assim peguei os três pedacinhos de papel, fechei os olhos e os balancei devagar, fazendo saltar músicas, cheiros e cores do Japão e do Marrocos em minhas mãos em concha. Por um breve momento viajei para longe e nem sequer pensei na pilha de contas ociosas sobre a mesa. Mas medos e incertezas não tardaram a voltar ao meu coração inquieto, que desperto procurou sossego na enorme jaqueira lá fora, me lembrando sonhos em redes que balançam ao som de melodias antigas e espirituosas.
Segui em frente, refletindo sobre a melhor maneira de colocar em palavras meus pensamentos, embaralhados, confusos. Lembrei de frases inspiradoras que poderiam ajudar a desatar o nó que as ideias fizeram na minha mente. A todo momento me deparo com verdadeiras encruzilhadas de opções, emaranhados caminhos a percorrer. Devo entregar ao acaso a decisão a tomar?
O vento soprou forte, anunciando tempestade de verão. E levou para longe, por um momento, minhas dúvidas e inquietações.
“Por causa da minha cara redonda todo mundo acha que sou alegre mas quem me conhece sabe que sou essa gente que se dói inteira porque não vive só na superfície das coisas.” O vento acabou por carregar o cativeiro em que eu me encerro, feito de devaneios, hesitações, me mostrando que eu usava de um artifício pouco comum à minha pessoa: a procrastinação. O que haverá de desafiante, inquietante, perigoso nestas três bolinhas de papel que, afinal contém propostas que eu mesma me fiz?
Amo mais que tudo, a natureza, as árvores, minha jaqueira frondosa, o aconchego da minha rede e da música. No entanto, o Japão me chama pela chance que me dá de me afastar, estranhar, de me sentir totalmente estrangeira no mundo. E pela delicadeza refinada dos ritos, gestos, pessoas. O Marrocos, para conversar em francês com Paul Bowles sobre o país onde o escritor teria encontrado a sabedoria e o êxtase. Para visitar os becos de Tanger, o deserto amarelo ouro e. admirar o “Céu que nos protege” que ele tão vivamente descreveu. Por outro lado, um adiantamento sempre seria bem-vindo.
“Cada coisa tem sua hora e cada hora o seu cuidado”. Resoluta, pego uma bolinha de papel da tigela e abro-a, sem mais delongas.
Apreciei muitíssimo o exercício. Achei divertido e instigante. Como instigante tornou-se sua leitura, ao final. Acredito que as orientações iniciais precisas que a Júlia elencou, terminaram por tornar o texto melhor encadeado. E falando na Júlia, que sacada terminar o texto na voz da Rachel de Queiroz!
ResponderExcluirVaneska
Eu também gostei bastante do exercício por várias razões: obriga a gente ler com atenção o texto, cada parágrafo, a buscar um gancho apropriado sem perder o contexto de vista, nos remete ao escritor escolhido que inicia o rumo de ideias, pensamentos. Na segunda fase nosso encadeamento ficou mais coerente e interessante. Voltaremos a fazer esse tipo de exercício!
ResponderExcluirM.Júlia