PELE

Eliana Gesteira

Tudo havia acontecido muito rápido. Sofia mal conseguia lembrar. Foi durante os dias nublados do inverno de cinco anos atrás, em que ela, de férias, costumava passar horas andando contra o vento, descalça, a areia macia da praia sob os pés. Não percebia, mas um homem a olhava como um gato olha um passarinho. Guloso e paciente.

O homem se chamava Ivan e já havia alguns dias que ficava ali sentado, observando ao longe aquela criatura em seu habitat natural. Todos os dias ele vinha na hora do almoço na esperança de lhe falar, maquinando estratégias que pareciam infalíveis. Naquele dia desistiu mais uma vez e levantou-se para voltar ao trabalho, mas antes parou numa banca de jornal para comprar uma revista e ao sair esbarrou sem querer na mulher. Surpreso com o presente do acaso, inventou uma desculpa qualquer para abordá-la:

_ “Desculpa, machucou?!”

_ “Não, não. Não foi nada.”

_ “Ahn...Poderia dizer onde fica a farmácia?”

_ “Sim, fica nessa direção...vou passar em frente”

E acabaram seguindo juntos, conversando sobre banalidades. Um convite aceito para um café à tarde e dali em diante passaram a se ver com regularidade. Casaram-se.

Daquele encontro se estabeleceu uma alquimia improvável. Sofia, nos seus vinte poucos anos, era uma jovem corpulenta de carnes bem distribuídas, que gostava de usar roupas leves e transparentes. Trabalhava em uma livraria, mas poderia ser em qualquer outro lugar. Por sua vez, Ivan era um homem de negócios, magro, alto e de pele branco-acinzentada curtida em escritórios. Era comedido nas palavras e nos sentimentos, encontrando-se sempre bem vestido, da cabeça aos pés.

Sim, Sofia não temeu o desafio de compartilhar a vida com alguém tão diferente. No início, os dias foram de prazer intenso em macios lençóis de seda. Seu esposo e amante a tocava com a delicadeza e a firmeza de mãos experientes sobre seu corpo desinibido e ávido. Um pouco depois, ela, que não temia nada, nem calor, frio, vento ou pancadas da vida, passou a temer a perda daquela segunda pele, quente e acolhedora. Com aquele homem amoroso e cuidadoso sentia-se protegia das dores do mundo e da solidão, deixando-se envolver por suas preocupações constantes: “ia se resfriar”, “podia se machucar”...

Não, Ivan não a obrigou a nada. Amava como um colecionador ama a borboleta, guardava-a. Ela cedia, sentindo por ele um amor canino, não prestando atenção na infelicidade que surgia vagarosamente em pequenos gestos diários.

Foi numa situação cotidiana para o casal, ida a um coquetel no trabalho de Ivan, que Sofia, um pouco cansada, encostou a cabeça na janela para sentir a chuva que caía sobre a vidraça. Ficou ali por um tempo, como no limbo, entre o ambiente confortável e aquecido da festa e o mundo friorento de pessoas apressadas lá fora. Num movimento repentino, parecendo lembra-se de algo, voltou-se para a sala à procura do marido. Viu que ele estava junto a um grupo e, naquele exato momento passava a mão no cabelo impecavelmente penteado, levemente grisalho, e ajeitava a gravata. Tudo elegante e natural. Aquela visão fez Sofia estremecer e desviar o olhar para a janela, onde permaneceu até a hora de ir embora.

Voltaram para casa em silêncio. Sofia chegou a mover os lábios para dizer algo, mas segurou-se,  deixando novamente pender a cabeça, agora sobre o vidro gelado do veículo que os levava. Uma lágrima quente escorreu em seu rosto maquiado. Subitamente, pediu para Ivan abrir a porta. Ele protestou: “É noite, está chovendo, faz muito frio lá fora”. Ela gritou: “Para, para. Abre, por favor”.

Sofia saiu de seu refúgio e nos primeiros passos procurou andar devagar e com cuidado, parecendo pisar em brasas. Aos poucos foi sendo invadida por uma sensação de urgência que a fez tirar os sapatos e sentir a dureza e o frio do chão. Mas caminhava tão leve, que seus pés descalços mal sentiam os pequenos detritos deixados pela chuva e sua pele, em vez do frio de julho, experimentava a delicadeza da brisa que varria o ar.

Assim, seguiu desassombrada, parando somente para olhar a lua que teimava em surgir entre nuvens pesadas. Ia até arriscar uns passos de dança, mas parou em frente a uma porta espelhada e notou que sobre seu corpo havia uma pele fina, transparente e de pouco viço. Com muita paciência começou a arrancá-la, percebendo que por baixo havia outra, macia e brilhante. Puxou tudo. Contemplou-se novamente. Gostou do que viu e seguiu pela rua em passos largos e decididos.

E dançou.

Comentários

  1. Gostei muito do texto, boa historia, me lembra filme frances, com muitos pausas. O final com o toque fantastico da metafora da segunda pele tambem muito bom. Meu unico comentario e que na descricao dos personagens poderia ser um pouco menos descritivo e deixar mais para a imaginaçao do leitor.

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  2. Eu quis dizer na construção dos personagens e não descriçao...

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  3. Pois é Jurandir. Procurei usar descrições e detalhes para saturar o leitor com várias sensações, como na vida real. Talvez tenha sido demais. Não sei. Sei que estou aprendendo a cada texto e que gosto muito do trabalho artesanal de construí-lo. Ter um retorno e saber que consegui chegar um pouquinho onde queria é uma alegria. Por isso, agradeço muito suas considerações.

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  4. Mais outro texto teu original, inusitado, que faz a gente reler para entrar na história.
    Interessante o teu conteúdo e jeito de escrever. Não há perguntas nem respostas para o comportamento dos personagens, é isso não? Jurandir, quer falar da Nouvelle Vague?
    Maria Júlia

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  5. Penso que quem escreve não maneja títeres. Os personagens são seres errantes como eu, ou melhor, como qualquer um. No mais, sou nova no riscado e procuro experimentar. Então, Júlia, como fã de seus textos, só posso agradecer as considerações.
    Uma pergunta. Não é minha intenção, mas o texto ficou difícil de ler?

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  6. Sim...Estava pensando no Truffaut , meu favorito!

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  7. Um pouco, daí a noiuvelle vague..., mas ;é legível, não se preocupe!
    Maria Júlia

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  8. O texto, em minha percepção, retrata a vida de todos nós, onde cada um vai deixando um pouco de sua pele, seu viço, em troca (mesmo que inconsciente) de alguns benefícios (que vão se tornando malefícios) ao longo da vida, sem perceber que a transformação vai ocorrendo e, quando isso vem à tona, o questionamento em relação ao que fez da própria vida é inevitável.
    Fiquei com vontade de tirar um pouco da pele que hoje habito mas que não sei se me pertence.
    Elisa

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    1. Interessante sua visão, Elisa.Tem razão, para sobreviver é preciso trocar periodicamente de pele para poder crescer como fazem,as cobras.

      MariaJúlia

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  9. Gostei muitíssimo do texto, da forma de insinuar sem conduzir conclusões, o que acaba por tornar o leitor partícipe ativo da história. As percepções da Elisa também foram as minhas. Ao contrário do Jurandir, apreciei as descrições e não as considerei excessivas.
    Vaneska

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  10. "...dias nublados do inverno...um homem a olhava como um gato olha um passarinho....maquinando estratégias... uma alquimia improvável... a tocava com a delicadeza e a firmeza de mãos experientes sobre seu corpo desinibido e ávido. Amava como um colecionador ama a borboleta, guardava-a. Ela cedia, sentindo por ele um amor canino, não prestando atenção na infelicidade que surgia... vagarosamente..." Clima denso, tenso....como filme francês, iraniano. "Separação" vocês viram esse filme iraniano? Fantástico!

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  11. Minha querida amiga. Não poderia ser mais faacinante essa prévia de nosso reencontro. Você é o presente daquele futuro que sonhavamos nos idos século XX.2o grau que transmutiu em ensino médio e que na verdade virou ensino minimo. Mas você virou borboleta.

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    1. Corrigindo esse corretor desobediente *fascinante *transmutou

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  12. Que belo texto!
    No prazer de conhece-la recentemente, nos contou do desafio neste período da vida, escrever. Narrando o PELE, despertou a minha curiosidde de conhecer suas escritas. Parabéns! Vá em frente!

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  13. Que belo texto!
    No prazer de conhece-la recentemente, nos contou do desafio neste período da vida, escrever. Narrando o PELE, despertou a minha curiosidde de conhecer suas escritas. Parabéns! Vá em frente!

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