AINDA NÃO
Aspiramos a verdade e só encontramos em nós incerteza.
Pascal
Era domingo, final de tarde de um dia ensolarado, e Amanda descansava no banco do jardim de casa num momento de solidão desejada. Apesar da quase indiferença, notou uma borboleta amarela que voava sobre sua cabeça e também a luz do sol filtrada em suas asas. “Ah, a vida”, disse, e um leve tremor lhe percorreu o corpo.
Então levantou-se e passou a acompanhar o voo do inseto em pé. Após girar a cabeça de um lado para o outro, mudou de posição e lentamente esticou o braço, colocou os dedos em pinça e zás! A borboleta foi aprisionada em um copo emborcado. Por alguns minutos ou uma eternidade, conforme o ponto de vista, suas asas aflitas encontraram paredes de vidro diante de olhos grandes e interessados.
Não, Amanda não era má. É que estava cansada de ver a vida e a alegria ostentadas aos borbotões, mesmo entre aqueles que se diziam infelizes ou entre os que asseguravam “o mundo é um horror”. Mas por caminhar à beira do próprio abismo pensou na sorte das pessoas indiferentes à dor e suspendeu o copo, deixando a prisioneira sair. Livre, a borboleta voltou a zanzar por ali mesmo.
Amanda sacudiu a cabeça e resmungou: “Incrível!” e entrou em casa para fazer alguma coisa. De preferência algo inútil que a levasse à exaustão, já que tudo lhe parecia melhor quando ficava muito cansada.
Mas antes disso, abriu o armário da cozinha e pegou a última garrafa de whisky. Bebeu uma, duas, três doses. Parou. Fez uma careta e bebeu mais uma duas três quatro. Já tonta, lembrou que tinha algo a fazer e decidiu consertar o carrinho de feira no porão. Em passos hesitantes caminhou até a escada.
Durante a descida Amanda quase caiu dos degraus, mas agarrou-se com firmeza no corrimão e afirmou para si: “Não, ainda não”. Embora quisesse anestesiar a dor, se apegava a vida; embora quisesse beber muito, esperançosa do aniquilamento, não desejava que resultasse em comiseração. “Dissimule, participe da vida” - dizia a se imolar.
Enfim chegou ao fundo. Lá sentou e acabou dormindo um sono ininterrupto e pesado.
Levantou pela manhã. O rosto inchado, os olhos lacrimejantes, o corpo doído e a cabeça pesada. Nada que um bom banho quente, seguido de uma ducha fria, maquiagem, um Sonrisal e um óculo escuro não resolvessem. Tomou o café correndo e saiu para o escritório, onde ficaria sozinha em seu cubículo diante do computador.
A noite chegou e com ela o martírio de caminhar entre transeuntes alegres, entre grupos confraternizando em bares e pessoas que mal se conheciam, mas trocavam olhares cordiais como se a vida fosse contentamento e não aflição.
Amanda olhou a faixa amarela da avenida e esperou o sinal abrir. Seu corpo balançava lerdo, sua mente girava.
Olhos à frente, carros zunindo na pista; ao lado, meninos descalços comendo hambúrguer, bocas cheias, escancaradas, risonhas; para cima, o relógio da Central do Brasil marcando mais um minuto.
Sim, viu que era hora de se despedir da vida. Deu um salto para frente e zás! Nunca mais a dor.
Esse não é o sentido mais esperado da vida. Mas acontece tanto. E para tantos, as saídas são as mais solitárias. Triste...
ResponderExcluirDe repente, seu final me lembrou de A Hora da estrela mas Amanda não é Macabéia, Amanda não vai ao encontro de ninguém, de nada. Relato curto, conciso e trágico.
ResponderExcluirM. Júlia
Bem lembrado, MJ! A hora da estrela!
ResponderExcluirTalvez a jornada de Amanda não fosse encontrar um sentido na vida. Se é que podemos falar em sentido da vida como essência. Seu ato, ela me mostrou (não estou louca, acho), parece ser uma questão existencial. A dor de viver e a aposta pela vida é algo comum aos humanos; a dor de viver e a desistência da vida, não é uma configuração tão comum e aceita, mas é plenamente humana. Eu queria muito que ela vivesse, até escrevi outro final, porque é difícil aceitar que alguém tire a própria vida. Demorei a escrever, mesmo depois de decidida a abordar o tema, queria mais tempo, queria mais linhas, queria não escrever. Mas taí.
ResponderExcluirEnfim, é um tema tabu, mas descobri em minha pesquisa que o suicídio é a segunda maior causa de morte em mulheres jovens em SP. O conto é por essas mulheres.
Obrigada, meninas, pelas palavras.
Sim, Eliana...talvez (ou só alguma vezes) “O único sentido íntimo das coisas
ExcluirÉ elas não terem sentido íntimo nenhum.”
Vaneska
Estranho falar tanto do próprio texto, mas carecia.
ResponderExcluirTenho certeza que elas estão muito bem representadas.
ResponderExcluirRelato sensível dessa realidade... Sua abordagem é muito reflexiva, nos leva a pensar nos suicídios diários, que cada ser carrega ao desistir de um sonho, por exemplo. Além da dor de uma quase vida... Muito bom.
ResponderExcluir"Tudo de que precisamos para receber auxilio direto é pedi-lo...pedir a compaixão dos seres iluminados, pedir a purificação e a cura, pedir o poder de compreender o significado do nosso sofrimento e transformá-lo... pedir o crescimento da claridade, paz e discernimento em nossas vidas..." O Livro Tibetano do Viver e do Morrer, Sogyal Rinpoche, pg. 191
ResponderExcluir"Por alguns minutos ou uma eternidade, conforme o ponto de vista" - amei esta frase e o conto todo. A borboleta, a alegria aos borbotões, a escada, a Central - tantos símbolos interessantes. Você trata com muita sutileza e também, como você escreveu, humanidade, um tema tão sério e difícil.
ResponderExcluirInteressante precisarmos de uma dose extra de coragem para tratar um tema tão humano, tão presente, infelizmente tão corriqueiro.
ResponderExcluirAmanda, por suas mãos, mostrou-se muito factível, muito próxima de nós. Texto cheio de sutilezas, encadeado, bonito...
A cada rodada seus textos vão mais fundo! Parabéns!
Vaneska