TIPOS DA MINHA VIDA DOMÉSTICA
Maria Júlia
Saskia era alta, forte,
loura, de cabelos cacheados, olhos azuis pálidos e arregalados. Sentada ali no
meu sofá ao lado do marido, aparentava timidez e falta de traquejo. Parecia um
tipo saído dos quadros de antigamente, mais precisamente, a Imperatriz
Leopoldina. Após uma sessão de chá com biscoitos e as perguntas usuais,
resolvemos contratá-la como “ajudante”, a palavra aqui usada para as
domésticas.
Combinamos que ela viria
umas horinhas por semana limpar o apartamento e cuidar do meu filho. O meu
parco holandês não contribuía para uma comunicação espontânea. Eu não sabia
lidar direito com ela, estava me iniciando nos estranhos rituais de outra
cultura. Saskia ia e vinha, trabalhava bem, sempre calada e séria, não queria
muito contato comigo. De repente, avisou que não queria mais continuar lá em
casa. O ambiente não era aconchegante e ela se frustrava com a preferência que
meu filho claramente demonstrava ter por mim. Sentia-se simplesmente rejeitada.
Foi a primeira de duas auxiliares que resolveram compensar seus problemas de
infertilidade trabalhando lá em
casa. Resolvi partir
para outra e então procurei um faxineiro, um homem.
Peter, vulgo Paco, era
fissurado pela Espanha, língua que estudava e que desejava praticar comigo, já
que eu falava um fluente portunhol. Sua motivação era estar numa casa com
ambiente latino. A minha, pois. Magro, barbudo, de cabelos compridos, era um daqueles
eternos estudantes de sociologia dos “países não- ocidentais”, disciplina, bem
ou mal, agora extinta. Durante a entrevista, que se levava extremamente à
sério, passou a noite na sala, enrolando tabaco, tomando cerveja, e discorrendo
sobre as injustiças do mundo e da vida. Para o meu pai, de visita a Amsterdã,
era impossível entender porque tínhamos escolhido este estudante politizado,
barbudo, folgado, sobretudo, um homem para limpar a casa. Paco entrava, pegava
o aspirador, limpava a sala, suspirava, e perguntava se tínhamos uma cervejinha
na geladeira. Em geral, tínhamos. Eu chegava em casa esbaforida, querendo paz e
silêncio, mas qual o quê! Paco se instalava na poltrona, enrolava outro
cigarrinho, e passava a discorrer sobre a mais valia e a luta de classes. Um
dia, desapareceu, deixando uma longa carta, expressando sua insatisfação com o
trabalho. Da nossa parte não havia reconhecimento, nem valorização. Ele limpava
tudo mas, vejam só: na semana seguinte, a casa já estava desordenada e lá tinha
ele que aspirar a escada de novo. Por que é que nós cismávamos em subir e
descer a toda hora? Por que o meu filhinho jogava migalhas no tapete? Não tendo
respostas para estas indagações, resolvi mudar o perfil dos ajudantes. Procurei
uma estrangeira, como eu.
Com a possibilidade de um
bom quarto e salário condigno, chegou Jackie: loura, linda, australiana, bem
recomendada e com uma agenda secreta em punho. Viera direto de Zurique no seu
velho Morris verde musgo, perseguindo um milionário residente no meu bairro.
Essa era a motivação laboral. Entre os afazeres diários, os insistentes
telefonemas para ele e os da mãe, lhe atazanando na distante Sydney, insistindo
que ela fisgasse um marido próspero, ela também tinha um nobre holandês na
manga. O coringa era gago, enrustido, arruinado, e ... totalmente apaixonado.
Morava com a mãe em um castelinho fora da cidade. Emprestava dinheiro à moça
para os gastos inesperados e também o seu ouvido, para os relatos sobre os
amores desditosos. Realmente, Jackie não acertava a mão, o seu afã de encontrar
um bom partido parecia assustar os pretendentes. Conosco também não deu certo.
Jackie foi despedida, largada pelo empresário, e classificada de “vigarista”
pelo nobre.
E assim caminha a
humanidade: a moça ingênua das pinturas antigas, de olhos azuis arregalados
(pelo hipertireoidismo), o rebelde sem causa, personagem de todos os tempos e a
mocinha de Jane Austen (ver abaixo), vítima das mães alcoviteiras e de um
outrora que ainda não se foi. Continuamos sendo.
Acho que vou ser repetitiva, mas aprecio muito a sua forma de construir e descrever seus personagens. Interessante pensar nesse tema, fora dos estereótipos que construímos aqui na Brasil."Outrora que ainda não se foi"...achei bem bonito!
ResponderExcluirVaneska
Também serei repetitiva Vaneska: fico bastante feliz com elogios que partem da escritora que você é. Quanto as minhas escritas, às vezes, receio estar repetindo ao introduzir situações meio que estranhas, mas o fato é que nada foi inventado do(s)descritos acima.
Excluir