CRIME SEM CASTIGO

Jurandir de Oliveira

Objetos muitas vezes inesperados adquirem importância em nossas vidas para com o tempo acabarem esquecidos no fundo de um armário.

Não quero entrar no porquê, mas houve uma época em que eu estava decidido a conseguir um molde para confeccionar chapéus. Eram os anos 80 e as poucas chapelarias que não haviam fechado, emanavam, faz muito, aquele ar de anacronismo e de abandono. O fato que eu quero narrar aconteceu num lugar assim. Uma lojinha no Largo do Machado, Rio de Janeiro. Olhando pela vitrina empoeirada, via-se em primeiro plano, alguns modelos de chapéus antiquados, em cores que teríamos que imaginar, subtraindo o efeito do tempo e do sol implacável. Nas prateleiras internas da loja, uma camada suave de poeira, dava a alguns modelos, vistos desde onde eu estava, uma aparência aveludada. Outros elementos como uns poucos bibelôs , um espelho bisotado e flores de seda, compunham esse melancólico acervo.

Desviando o olhar para o fundo da loja, numa prateleira alta perto de uma cortina de brocado, pude ver o objeto por mim tão ambicionado - o molde de madeira para fazer chapéus. Foi nesse momento que a cortina se abriu e vi aquela senhora miúda entrar em cena. De mais de 70 anos, de pele muito branca, o cabelo ralo e de uma cor parecida com a de um dos chapéus da vitrine, era como saída de um filme de mistério.

Ao perceber minha presença, a senhora fez um movimento similar ao de uma ave esticando o pescoço e baixou um pouco os pequenos óculos para ver-me melhor.

Como reação imediata, descolei o nariz da vitrina e recuei um passo.

Agora, aquele jovem de 21 anos vestido de preto, alto, pálido e muito tímido, repassava mentalmente o que iria falar ao transpor o umbral da porta. Não poderia continuar parado ali, ou ia embora ou entrava. Senti meu coração bater mais rápido e de repente fazia um calor insuportável. Respirei fundo e enquanto entrava, com as costas da mão eliminei as gotinhas de suor do rosto.

Passar aquele umbral, fora a timidez, era como transpor um espaço-tempo. Quando se é muito tímido, se espera sempre que um ato de coragem seja recompensado com a gentileza. Se isso não acontece ficamos terrivelmente frustrados.

-Em que posso ajudá- lo, jovem?

-Eu, bom , eu gosto muito de chapéus, aprendi a fazer alguns na universidade, eu estudo Artes Cênicas , pensei que a senhora poderia me ensinar mais desse oficio, eu não tenho a fôrma para fazer os chapéus, talvez me deixasse trabalhar aqui para aprender...

Acho que nesse momento corei. A velha senhora dessa vez me olhou de cima a baixo. Pude ver as pequenas rugas que se formaram quando os lábios se tensionam num rictus. A voz saiu mais antipática que da primeira vez, e, se já era pouco provável, agora não havia dúvida que eu não era um cliente, ou pelo menos o filho de uma cliente , que tivesse vindo fazer uma encomenda. Eu, na minha inocente lógica de estudante, pensei que aquela chapeleira, onde muitos anos atrás minha mãe havia encomendado um chapéu , ficaria feliz em ver um jovem interessado em perpetuar aquela arte. Mas não. Teria eu que ter a idade que tenho hoje, para entender como tão frequentemente o egoísmo dos velhos e o dos jovens se entrecruzam.

-Desculpe-me cavalheiro, mas eu realmente não estou interessada . Eu tenho as minhas encomendas, não tenho tempo de ensinar a ninguém.

-Mas a senhora...tem muitas encomendas?...mas, eu pensei...se eu passo sempre por essa rua ...não vejo ninguém entrar...des-desculpa... gaguejei.

-Ora, senhor, dai-me paciência! Disse ela, nitidamente irritada.

Outra vez senti meu rosto arder... Podia ver, bem acima da cabeça da mulher, a cabeça de madeira, como se fosse um segundo interlocutor silencioso que zombava de mim...as marcas naturais do material até se assemelhavam com o desenho de um sarcástico sorriso.

O telefone tocou e ela, de forma enérgica, abriu a cortina com um som metálico desagradável, tão desagradável como a sua voz. Nem disse "com licença", me deixou falando sozinho, talvez esperando que assim eu fosse embora mais rápido. Estava no telefone, meio escondida pela cortina, mas eu nem escutava o que falava porque meu corpo tremia , nervoso por aquilo que havia decidido fazer. Outra vez meu coração batia rápido, tão intenso que me faltava a respiração. O suor escorria pela minha testa. Foi um par de segundos mas pareceu-me muito mais, agarrei a cabeça de madeira e sai como um louco, nem sei como consegui abrir a porta, nem sei se voltei a fechá-la. Apenas alcancei a rua e sai correndo. Corri muitas, muitas ruas, nem sei quanto tempo corri e nunca mais passei nem perto daquele lugar...

Comentários

  1. Original,como sempre, parecendo biográfico, o seu relato sobre o ambicioso(!) futuro chapeleiro,com muita riqueza de detalhes dos ambientes da época e transportando a gente para o tal recinto no Largo do Machado, Sutil e realista.

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  2. Anos 80. Uma loja melancólica no Largo do Machado. Flores de seda, prateleiras empoeiradas, cortina de brocado e um objeto raro de desejo. Uma velha senhora, muito branca, enrugada, antipática e de cabelos ralos surgindo atrás de uma cortina. Um jovem vestido de preto, alto, pálido, muito tímido, com o coração disparado e o nariz colado na vitrine. Detalhes de um filme de mistério, de um filme de horror. Algo muito dramático parece estar por vir. O escritor conduz muito bem um clima de tensão ao longo do texto. Parabéns.
    Fiquei imaginando esse mesmo texto escrito na terceira pessoa, trazendo talvez, ainda mais dramaticidade à cena.

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  3. Fiquei na expectativa de como seria o final da história, já que o título nos dava uma dica de que algo "criminoso" iria acontecer. A riqueza dos detalhes aumentou ainda mais o suspense, que ganhou muito com os personagens bem construídos. Me identifiquei com o inocente e intrépido protagonista e quis torcer o pescoço da dona da loja, uma bruxa.

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  4. O trabalho descritivo do texto é realmente muito bom. Somos transportados àquele tempo e lugar de forma muito envolvente e convincente. Gostei muito da forma de contar a história, salpicando-a de delicadas reflexões como a expectativa dos tímidos e a imutabilidade dos egoísmos. O crime, ao final, foi surpeendente...e acho que nao merecia mesmo qualquer castigo.
    Vaneska

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  5. Forma original de tratar o tema. Texto poético e envolvente, com um toque de ingenuidade do protagonista, criando suspense no leitor. Bom ficcionista, Jurandir.

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  6. Obrigado pelos comentários favoraveis ao meu texto. Hoje acordei pensando em vces e queria compartir com o grupo algumas idéias. É interessante isso de que não nos conhecemos em pessoa. Pouco à pouco tenho formado uma imagem de cada uma, todas me parecem muito simpaticas e com personalidades bastante definidas. Quero contar que essa atividade tem me ajudado muito. Sempre gostei de escrever mas o fazia quase que secretamente, em alguma folha de uma agenda, nas ultimas folhas em branco de um livro, em cadernos. Misturava o portugues e o espanhol ,porque escrevia em bruto. Como vinha na cabeça eu ia escrevendo. O convite para participar do grupo me tem ajudado muito a desenvolver essa capacidade de expresar-me atraves das palavras e tambem um reencontro definitivo com o meu idioma natal. Me interessa a ficçao, e desenvolver essa capacidade de contar uma história. Adoro escrever na primeira pessoa mas isso nao quer dizer q seja autobiografico. Igual q um ator que utiliza emoçoes vividas como materia prima para representar uma situaçao , utilizo situacoes vistas ou vividas misturada com a ficçao , transportadas ao personagem criado, e uso a primeira pessoa porque considero que essa proximidade me permite expresar-me melhor. Por outro lado graças a Deus o panorama cultural parece q começa a mudar aqui no Panamá. A feira do livro esta cada vez mais concorrida e tenho ido a atividades bem interessantes, como uma palestra que fui essa semama sobre o desenvolvimento da Creatividade. A palestra foi dada por uma psicanalista española que contou entre outras coisas sua experiencia com presos e enfermos mentais. A palestra foi numa galeria de arte e para minha surpresa havia varios escritores. Se recomendou como um fabuloso exercicio ,15 min diarios de desenho, desenho o mais dispretensioso possivel, como aqueles rabiscos q fazemos enquanto estamos no telefone. Diz q sao apenas 15 min diarios e os resultados depois de um mes ou dois sao notorios. Vou aderir a pratica e depois eu conto para voces . Basicamente é isso. Feliz fim de semana a todas!

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