SERÁ QUE A VIDA É SÓ ISSO?
Angela Fleury
--- Em uma habitação subterrânea em forma de caverna, com uma entrada aberta para a luz, estamos todos acorrentados bem no fundo, virados para uma parede, incapazes de voltar a cabeça. Você já percebeu isso? Com os pés e mãos amarrados, algemados nas pernas e nos pescoços, estamos incapazes de reagir, estamos todos imobilizados de tal maneira que só nos é permitido permanecer no mesmo lugar e olhar em uma única direção. Nada parece fazer sentido, mas mesmo assim há uma apatia geral. Parecemos estar definitivamente absortos pelo desconfortável espetáculo das falsas imagens, mas há de chegar uma hora em que tudo isso já não bastará mais. É certo, porém, que apesar de calados e encarcerados estão todos com o peito apertado, a beira de uma violenta e barulhenta explosão. Nada mais atual do que esta visão de Platão, para espelhar nosso tempo contemporâneo, você não acha?
Diálogo platônico em uma caverna contemporânea:

--- Você acredita mesmo que uma pessoa nessas condições possa endireitar-se de repente, ter alguma atitude, reagir, reclamar, gritar, protestar, soltar suas amarras, sair da caverna como acreditava o filósofo grego e curar-se de sua ignorância? Ela acreditaria que até esse momento só vira coisas vãs, mas que haveria a possibilidade de uma libertação na direção de uma autêntica existência? Acreditaria que a vida é muito mais do que isso, acreditaria nas suas próprias forças, enfrentaria seus medos? Além do mais, será possível que ainda dê tempo de tomar outro rumo dentro desta desordem ilusória, em pleno caos deste século XXI ou já seria tarde demais?
--- Não sei, na verdade não sei, mas parece que estamos vivendo um período de passagem, muita coisa está se transformando, há muitos insatisfeitos, alguns já começam a se incomodar, há até alguns que já começam a se levantar, aqueles que se escondiam e se calavam começam a tomar coragem de se expressar, talvez haja uma esperança, um cultivar de um movimento. A vida na escuridão da caverna tem causado muita aflição e desânimo e a saída em direção ao sol poderá, quem sabe, acontecer um dia. Talvez demore, talvez não, pois além de tudo, há uma incerteza absoluta e muitos prisioneiros parecem convictos de que este obscurecimento é “a verdade”. Precisariam de muito empenho e estimulo para sair deste subterrâneo, seria necessário empreender uma luta para olhar para os lados, quebrar as correntes, virar o pescoço, começar, mesmo que lentamente a se mexer e a buscar o olhar do próximo, entender que estamos todos no mesmo barco, ou melhor, no mesmo buraco. Esforçar-se para olhar em volta, voltar os olhos para o outro que está amarrado, mas mesmo assim deslumbrado com as sombras projetadas na parede sem perceber que são apenas sombras.
--- Mas, antes, seria preciso cada um ouvir a si mesmo, suas próprias dores e perturbações, sentir que é um prisioneiro, tomar consciência do que está acontecendo, sentir o peso da atmosfera, perceber a falta de ar, reconhecer a falta de luz dentro da gruta escura, admitir, como Sócrates, que só sabe que nada sabe. Seria preciso observar o corpo dolorido e buscar as causas dessas dores, perceber a inspiração sufocada, o ar que custa a entrar, e a dificuldade da expiração, para só então poder ir desamarrando, desfazendo os nós pessoais para poder, então, finalmente, quebrar as correntes, levantar, deixar para trás as falsas imagens, e partir na direção do olhar o outro.
Muito interessante seu diálogo em forma de releitura das metáforas da alegoria da caverna. Até que ponto suportaremos a escuridão da caverna? Como superá-la? Pergunta atualíssima. Acho que as indicações de resposta elencadas no último parágrafo apontam um caminho possível.
ResponderExcluirVaneska
Escrever é sempre reescrever, aprendendo com o passado, atualizando o presente e projetando um outro futuro. Foi esta a mensagem que me passou, achei bem bacana o seu texto.
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ResponderExcluirO comentário saiu duplicado. Excluí um.
ExcluirSeja na alegoria da Caverna de Platão, seja na Matriz de Neo, seja na sociedade atual busca-se distinguir o verdadeiro do falso e como se passar da escuridão à claridade. O diálogo que Ângela trouxe faz essa conexão. Tema muito atual como disse Vaneska.
ResponderExcluirMas existe uma categoria que na visão de Platão ficaria no meio do caminho entre a verdade e o engano, entre o escuro da caverna e a claridade lá fora. Os artistas. Entre a pílula azul e a vermelha? Eles ficam com a roxa.