E A CHUVA CONTINUA CAINDO

Eliana Gesteira

Cabelos espalhados no ar e saia esvoaçante em mãos que em vão se esforçavam. Um assobio forte, seguido de um ruído de coisa quebrada, assustou uma jovem. Sob seus pés voavam pedaços de vida esquecidos na rua durante aquele dia quente de setembro.

Embora o mundo estivesse preste a desabar, a jovem, que os amigos chamavam Bia, encontrava-se sentada no banco da praça desde o início da tarde, quando o céu sobre sua cabeça passou de um azul claro brilhante para um pesado cinza escuro. 

“Preciso me acalmar”, disse a si mesma. Mas o dia anterior insistia em surgir como um pesadelo que não acabava nunca e calma, definitivamente, era algo que Bia não desejava ter naquele momento. 

Apesar de sua obstinação em não sair do lugar, quando os primeiros pingos de chuva começaram a cair sobre sua cabeça e a molhar seu rosto, ela não teve escolha. Correu contra o vento e foi encontrar abrigo num restaurante no outro lado da rua. 

Enquanto corria, lhe veio à lembrança o momento em que saiu de casa. Na hora, sem dizer uma palavra, muniu-se de uma serenidade estoica para evitar uma explosão de raiva que, sabia, não demoraria a passar, como sempre. Esse pensamento fez com que suas lágrimas enfim corressem soltas e se misturassem à chuva que começava a cair forte.

Mesmo molhada, entrou às pressas no restaurante e sentou-se junto à janela envidraçada, onde um vento furioso batia sem piedade. Por sorte, conseguiu se instalar num cantinho que lhe deu uma agradável sensação de segurança. Procurou um lenço em sua bolsa, se enxugou e buscou um lugar para se esconder longe de si mesma.

A voz insistente do garçom a trouxe de volta. 

_ “Oi, oi, moça, moça, tá me escutando!? Deseja alguma coisa?”. ”

Bia demorou a entender o que ele dizia, mas acabou pedindo um pedaço de bolo e um café, que bebeu sem pressa. De gole em gole, entre rodopios de fumaça, a noite anterior foi surgindo devagar. Primeiro o olhar feroz, depois a mão que voou em seu rosto e finalmente o movimentar-se mole e patético nos braços de Felipe. 

Um estrondo, seguido de uma luz forte a fez saltar da cadeira e a voltar a sentir medo. Medo que logo se transformou em raiva. Resolveu então pedir um conhaque, que bebeu de uma vez só, fazendo careta. 

Bia não podia imaginar, mas ainda cedo o namorado tinha ido procurá-la, encontrando-a com certa facilidade, já que ali era o lugar onde se conheceram. Mas ele desistiu de se aproximar quando a viu de longe, o olhar louco e triste.

Alheia às avaliações sobre seu estado de espírito, Bia pediu mais uma dose e bebeu dessa vez lentamente, enquanto olhava a rua e admirava a tempestade que se abatia sobre a cidade. 

Sem perceber, um colega de trabalho parou em sua frente:

_ “Ora, ora. Não sabia que era chegada a uma birita. Sempre tão séria no escritório. Posso me sentar?”.

Era o Carlos, que sem esperar resposta, foi logo se alojando na cadeira. Bia, não tendo escolha, só fez que sim com a cabeça. 

Enquanto ele gesticulava e ria alto, ela disfarçadamente se distraía com o efeito da chuva sobre a vidraça. Numa dessas escapadas do olhar, notou que a chuva finalmente amainava, caindo agora preguiçosa, como se estivesse cansada de tanto alvoroço. Sem pestanejar, Bia perguntou:

_ “Vamos caminhar?”

_ “Mas ainda está chovendo!”

_ “O que é que tem!? Vem comigo, na chuva é que é bom!”

_ “Tá. Vamos!

Lá fora o dia findava e o ar era fresco e leve. Eles andaram por muitas quadras, falaram sobre coisas das quais gostavam e a chuva continuou caindo serena sobre suas cabeças.

Comentários

  1. Gosto sempre desses encontros e desencontros. A vida esta cheia de surpresas e tudo depende de nós. Da nossa ousadia. Isso representa riscos, então é delicioso poder viver esses riscos atraves dos nossos personagens. Correr na chuva, ou dar aquele/a colega uma oportunidade de mostrar uma faceta diferente daquela do trabalho. Esses dias vendo "Everest" me perguntava o que leva o ser humano a arrisgar voluntariamente a própria vida para fazer algo considerado extraórdinario. Acho que tem a ver com o medo que temos muitas vezes de uma rotina esmagadora que nos transforma em seres pequeninhos atemorizados por todo tipo de medos. Por isso me encantou o texto. É fundamental caminhar na chuva!!!

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  2. Valeu Jurandir! Confesso que me perdi um pouco nessa tempestade, mas quis continuar e brincar um pouco na chuva. Abs

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  3. Cantar na chuva já é bom,imaginem caminhar! Como sempre,vc. é original na descrição de personagens, do cotidiano, e nos seus finais. Muito bom.

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  4. O texto que não precisa de retoques já é uma marca sua. Aprecio muitíssimo a forma como personagens e situações são descritos. Ótimo texto!

    Vaneska

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  5. Texto muito bom. A vida está cheia de situações que servem de inspiração para a literatura. A questão é saber contar bem uma história e ter talento literário. Você soube fazer muito bem. Destaco a frase: se esconder de si mesma.

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  6. Gostei dos textos. E historias são bem feitos, mas tenho uma pergunta vcs escrevem contando a realidade ou só buscam inspiração na vida real

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