QUE HORAS ELE CHEGA?

Eliana Gesteira 

A luz da manhã entra pela janela e cai direto nos olhos de Francisca. Ela desperta e imediatamente se volta para o lado. O lençol no chão e a cama vazia não a surpreendem.
Na mesinha do canto um relógio mudo a faz levantar num salto. Prende o cabelo em coque e coloca no corpo franzino o vestido azul claro, procurando disfarçar uma ponta desfeita. Sente uma ligeira tonteira e mais uma vez jura que amanhã irá ao médico. Precisaria, claro, pedir uma folga à Dona Míriam, que fará cara de pena com um “sinto muito”, seguido de um “logo amanhã!?”. Mas afasta o pensamento, afinal não quer ser ingrata com a patroa.
Toma café, desce as ruas estreitas e chega ao asfalto. Para na banca perto do ponto, lê as notícias que balançam em jornais desajeitados. Atravessa a rua, dá sinal para o ônibus e se espreme entre os passageiros. Desce, corre e pega o elevador de serviço. “9 e 15 Meu Deus!”.
Chega à noitinha, sua casa está em silêncio e às escuras. Francisca anda devagar pela sala com o coração aos pulos lembrando o que escutou na rua: “...tanto assalto por aí”. Prepara uma refeição para dois e espera. Adormece. Acorda já muito tarde. Ajoelha em frente à imagem de Nossa Senhora e reza.
De pé, os olhos fixos na porta, lembrou da noite anterior quando Jonas chegou tarde e, vendo que estava preocupada, foi logo se desculpando por ter ficado na esquina com os amigos. Falava alto, contava coisas, se apressando em dizer que estava tudo bem. De um impulso a suspendeu nos braços e disse: “Olha mãe, olha o que eu trouxe para você!” e espalhou na mesa uma pulseira, um relógio e uma bolsa com um terço dentro. Francisca, sem saber o que dizer, chorou, enquanto passava a mão no cabelo descolorido e cortado rente de seu menino. Quis pegá-lo no colo, mas desistiu e o segurou num abraço forte. Depois, balançando juntos, cantou uma canção de ninar e ouviu dele baixinho: “não se preocupa, mãe, estou aqui, vou te proteger”.
Pela manhã um galo cantou longe. Francisca acorda e vê a cama ainda vazia. Fez o que faz todos os dias e desceu o morro para esperar o ônibus. Distraída, olhou a banca de jornal. Na manchete uma foto borrada e as iniciais J.S.F. Em volta, conhecidos comentam e se desesperam. Francisca se aproxima, apertando os olhos. 
Um grito e sob os pés o chão se abriu. 
Tonta, sai cambaleante em direção à rua. Um carro buzina alto e de dentro um motorista gesticula frenético. Francisca olha para ele e diz: 
- “Meu filho! É meu filho!”. 
O homem, olhar esgazeado, berra: 
- “Foda-se!” e vai embora cantando pneu.

(Texto com base na música de Chico Buarque, O meu guri, gravada em 1981)

Comentários

  1. Forte, bonito,conciso e verdadeiro.Parabéns, Eliana!
    Maria Júlia

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  2. Poderia ser o roteiro de um Curta/ com trilha sonora do Chico/ prendeu minha atenção do princípio ao fim/
    Lidia (liacora)

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  3. Com as palavras e o incentivo de nossa Decana, Maria Júlia, só posso ir para a galera.

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  4. A gente já ouve o Chico cantando lá pelo meio do texto. Muito bom, muito bem escrito, comovente.
    Vaneska

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