FÉ
Jurandyr de Oliveira
Já estando na minha terceira etapa, sabia que era o momento então, de preparar-me para uma nova vida. Poucos seres no mundo tem esse privilégio - chegar na maturidade e renascer com a sabedoria adquirida no transcurso da vida. Naquele momento eu não sabia exatamente o que estaria por acontecer. Simplesmente uma força superior me guiava.
Hoje entendo como minha progenitora teve que ser cuidadosa, escolhendo para
depositar seus ovos em lugar pouco acessível - debaixo das folhas!
O primeiro sentimento que lembro como parte da minha efêmera existência foi o de
despertar com uma fome insaciável. Meu corpo movendo-se num ritmo cadenciado
sem nenhum esforço . A mente vazia, só o resplendor do verde comigo, se
fundindo. E a umidade de algumas gotas de sereno, sobre o aveludado das folhas.
São poucas as memórias daquela época.
Movendo-me, descobri que apesar de ter
adquirido aos poucos, tamanho e algum peso, podia caminhar em cima ou embaixo
das folhas, sem cair. Com o tempo, era tanta a habilidade , que podia estar com
somente parte do corpo pegado às folhagens e o resto ao ar. Podia enroscar-me
deliciosamente ou balançar-me. Em segundos, o mundo virava literalmente de
cabeça para baixo e um azul brilhante invadia o meu campo de visão.
Os delicados
fios que sou capaz de produzir, me ajudaram ainda mais a potencializar essa
destreza. Podia segurar-me com eles, de maneira muito mais audaz e evoluída, do
que os seres que vi tempos depois, escalando montanhas.
Apesar disso, em meus
rápidos passeios, descobri que o mundo não era totalmente seguro. Mais de uma
vez estive a ponto de deixar essa terra precocemente, devorada por uma ave ou por
um inseto de maior dimensão.
Foi então que soube dos outros dotes que recebi e
que me faziam poderosa, quando a necessidade se apresentava. Podia ser bastante
desagradável ou, por outro lado, transformar-me para passar, sem ser notada,
onde quer que eu estivesse. Esse manto da invisibilidade, como eu gostava de
pensar, era um dos meus truques favoritos. Sentia-me tão integrada com o
ambiente, que as vezes eu ficava assim por horas, até que me cansava da inércia ou
a fome devoradora outra vez me invadia.
Passaram-se assim meses, mas os dias não tinham nada de monótonos. Não houve
um que eu pudesse dizer que foi igual ao outro. Nesse período troquei de pele
várias vezes e a cada pele nova, me sentia mais forte. .
Já estando na minha terceira etapa, sabia que era o momento então, de preparar-me para uma nova vida. Poucos seres no mundo tem esse privilégio - chegar na maturidade e renascer com a sabedoria adquirida no transcurso da vida. Naquele momento eu não sabia exatamente o que estaria por acontecer. Simplesmente uma força superior me guiava.
A fome, que havia sido um estado quase permanente para mim, cessou por
completo, e ao contrário do que se poderia imaginar, me sentia cheia de energia.
Primeiro busquei um lugar seguro, difícil para os meus possíveis predadores. Decidi
pelos galhos mais altos de um arbusto, me posicionei e comecei a fabricar fios que
se solidificavam ao contato com o ar. Ia tecendo um abrigo em volta de mim, como
uma bolsa que me envolvia totalmente, até que não ficasse nenhuma parte de mim
exposta. Pendurada em um dos galhos , meu corpo coberto e imóvel.
Essa foi a
época mais estranha de todas que conheci. Me sentia entre um sentimento de desespero, medo e ao mesmo tempo, uma grande fé. Imóvel e, apesar de não poder
ver o que acontecia lá fora, sentia quando a noite caía, pelas luzes que já não se
filtravam através do meu abrigo de seda. A brisa quando dava nos galhos, fazia as
folhas soarem e meu abrigo-prisão balançar suavemente .
Quando chovia , as gotas
de água escorriam pesadamente por cima de mim, esfriando meu corpo. Logo outra
vez, a luz atravessando e o calor da manhã consolava minha incógnita e dolorosa
espera.
Muito aprendi dessa fase transitória. Tempo em que pensei sobre os
mistérios do mundo e como a vida e a morte podiam ser tão relativas. Sentia que
morria, que minhas vísceras se contorciam. Desejava fervorosamente que aquele
sofrimento terminasse.
Foi infinito o tempo que esperei. Até que um dia...
aconteceu! Numa manhã de sol, o invólucro que me cobria se rompeu e, assustada,
comecei a debater-me.Um fluido vital inundou todo meu ser.
Foi então que percebi
a radical transformação. Havia adquirido grandes apêndices que, meio desajeitada,
me esforçava por estender. Comecei a mover-los e, tão fácil como aprendi a
caminhar sobre as folhas, aprendi a voar alto no céu. Foi uma experiência
extraordinária! Foi como se toda a espera, o sofrimento e o temor tivessem sido
recompensados!
Tudo era luz e beleza!
Seu texto parece uma sinfonia/ lembro de outro que vc escreveu sobre um lago e uma formiga, acho/ também me soou como música/ li com atençào e achei lindo e emocionante/ muito inspirado mesmo/
ResponderExcluirLidia (liacora)
Me banhei ao sol, devorei a vida, morri, me transformei e renasci. Belo texto, bela reflexão.
ResponderExcluirMUito sutil e sofisticado. Parabéns!!
ResponderExcluirMaria Júlia
Conseguiu transformar o que seria uma aula de biologia (e isso é também um elogio, pois o texto me parece ser bastante exato nas questões científicas que aborda) em uma "sinfonia poética". Fugiu completamente do lugar comum, não perdeu tempo com o óbvio. Parabéns!
ResponderExcluirVaneska
Obrigado pelos comentários. Fiquei contente .O contato com a natureza é um dos momentos que mais satisfação me pode proporcionar, adoraria ter mais tempo para observa-la, se pode aprender muito... Tenho tido problemas técnicos, por isso não tenho quase feito comentários, mas já resolvi, assim que em breve estarei ao dia. :-)
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