DARLENE

Victoria Wilson

Não sei quando foi que me embruteci. É sábado de manhã. Lavo minhas roupas íntimas no tanque. E é isso que me dá o sentido da vida.

Foi sempre assim, desde que me casei. Toda vez que acontecia algo importante ou o tédio tomava conta de mim, ia pro tanque e lá lavava roupas, sonhos e talvez mágoas. Mágoas, não. Hoje sei que eram raivas, muita raiva, ódio, às vezes. Um rancor enorme, sem fim. Logo eu? Tão meiga e cordata? Como poderia guardar tanto rancor assim?

Tudo começou naquele dia. Era um verão escaldante, meus pés inchados de tanto andar, carregando peso. Aliás, tarefa à qual fui me submetendo no decorrer dos anos. Carregar peso pra cima e pra baixo. Isso me aliviava de certa forma, de algo desconhecido para mim até então. Só fui saber mais tarde, muito mais tarde.

Carregava peso pelas ruas, então, a pé. Sequer pegava um ônibus ou táxi. Táxi, então, nem pensar? Como gastar dinheiro com táxi? Várias sacolas penduradas pelos braços, antebraço; as marcas vermelhas, rosadas, ficavam fundas e eu passava a admirá-las durante o resto do dia. Era o meu dever, o meu afazer, a minha glória. Lá pela noite, esmaeciam e depois finalmente desapareciam, sem deixarem o rastro, as marcas do dia.

Ah!, nada como amanhecer. E recomeçar. Cada dia um peso; uma dor, uma tarefa quase impossível. Dos braços e antebraços, as sacolas, sacos e embrulhos se acotovelavam em ombros, pescoço, em qualquer lugar onde fosse possível alojá-las.

Não parecia mais uma pessoa na rua. Nem mesmo sabia quem eu era mais. Soube um dia?

Não sei por que tais pensamentos vêm agora em minha cabeça. Me assaltam. Eu disse: o tanque, a água escorrendo pelas minhas mãos. Meus dedos engrossaram, a pele ressecou, mas descobri os cremes! Ah, os cremes Adoro potes, embalagens, cremes. Cremes e loções de todo tipo. Isso: a dor e o remédio.

Nos cremes, todo o desejo de viver a vida de Marylin, Diane ou qualquer outra mulher linda! Ai, a beleza das mulheres nas telas do cinema .... ao deslizar os cremes em meu corpo nem parecia a carregadora, a tarefeira, a varejista, a ambulante. Tudo desaparecia, e a maciez dos cremes aplacava a dor, a raiva intensa por alguns instantes apenas.

E isso tudo começou naquele dia. A vergonha, o desespero, a consciência, um rasgo dela atravessando a fotografia de um passado que tinha ficado tão pra trás, que parece nunca ter existido.

Não era eu. Impossível. Não podia. Onde estava aquela mulher? Em que pedaço da areia? Que sol pousava naqueles cabelos? Que raio de luz estava em seu olhar? Que sonhos abrigavam seu coração? O que sua boca murmurava no silêncio da fotografia?

Quem era aquela que segurava a fotografia em suas mãos? Quem era?




Comentários

  1. Muito interessante o seu tema, Victoria. As vidas passadas que tivemos(não, não acredito em reencarnação!),a ideia de que certas etapas da trajetória ficaram tão pra trás que a gente não se enxerga mais nelas, não tem a ver com a atual. Um estranhamento ao rever certas fotos antigas E você, a mulher do texto, lavando peças de lingerie - para recuperar a intimidade com a mulher de antes. "Em que espelho ficou perdida a minha face?"
    M.Júlia

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  2. Texto com belo ritmo. Provavelmente resultado de uma pontuação cuidadosa. Formal e aos mesmo tempo despretensiosa. A forma de descrever também tornou o texto bastante visual.
    É... nós não nos damos pela mudança, até que um espelho ou fotografia revelem alguém que já não nos é tão íntimo. Ótimo momento pra se reinventar.

    Vaneska

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  3. O texto nos mostra os sentimentos de uma mulher, dores, renúncias e sofrimentos autoimpostos. Tortas feminices, mas mesmo assim feminices percebidas nos sentimentos à flor da pele e no uso de cosméticos para alívio do corpo torturado. Se no final descobrimos a razão de tanta dor, a busca por algo que se perdeu, continuamos com a dúvida. Seria esse algo a juventude, a beleza ou os sonhos perdidos? Ou tudo junto?

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