MOSCOU -VILA ISABEL: LINHA DIRETA

Maria Júlia

Hoje de manhã, na Clínica aqui perto de casa, sou atendida pelo doutor Benjamin Gorberg, um velhinho de fartos cabelos (brancos), olhos azuis, sorriso jovial e conversa fácil: 

- Não, não sou alemão, qual é? Sou judeu russo, cheguei ao Rio em 1932 aos seis anos de idade. Vim de Moscou, direto para Vila Isabel, numa terça de Carnaval. Então, posso afirmar que o samba me alfabetizou. Entre uma aula e outra, uma namorada e outra, um problema e outro, meu consolo era Noel Rosas. 'Aí, quando esta vida não estava sopa eu perguntava: com que roupa?

-É mesmo? 

-Agora canto no Bipbip, o boteco cult do Posto 5, conhece? Meu ídolo é Noel. Pois foi ele, homem branco, classe média, que trouxe um refinamento para a música popular. Foi ele que fez o pessoal aceitar o ritmo inventado pelos negros e tocado pelos malandros da Lapa. Formidável!

Vila Isabel dos anos 30, uma terça carnavalesca. Fico pensando nos pais do médico nonagenário desembarcando no caos e calor da praça Mauá, sob o ritmo de Taí, e o Teu cabelo não nega. 

Lá, Stalin,.o início da coletivização, as revoltas camponesas, a fome de 1932. 

Aqui: Vargas, os anos 30, os entraves burocráticos, as exigências rigorosas para a entrada no país, o antissemitismo dos consulados brasileiros. A influência europeia na cultura brasileira perdendo gradativamente para a americana. E, em Vila Isabel, a Ipanema da época - grupos de mascarados, homens vestidos de mulher, batalhas de confete, acolhem os emigrantes. Aturdimento, medo, choque. 

Como terão conseguido driblar tantos empecilhos para sobreviver e a conviver com a sociedade brasileira? Como terão encarado a paixão do filho pelo samba? O que teria restado da alma russa do judeu errante se derretendo no calor tropical, amarrando-se numa Fita amarela? 

Emigrar é uma barganha cruel, li em algum lugar. Um constante toma- lá- dá -cá. O valor das coisas pode mudar de repente. Meu reino por um cavalo. Escambo de língua, história, identificações. Troca-se tudo isso e mais alguma coisa - a saudade -por exemplo, por um ganha pão, benefícios sociais e quem sabe, um amor. Em casos mais extremos, até a vida. 

No entanto, o dr. Gorberg se deu bem ao escambar sua jovem alma russa pela carioca, rendendo-se aos feitiços da Vila. Em tom confessional conta que também é fã de Carlos Gardel e que foi até beijado por uma portenha comovida, de passagem pelo Rio. Para comprovar, enquanto rabisca no papel suas garatujas profissionais, com uma vozinha fraca, olhos semicerrados, entoa: Mi Buenos querido. Me dá a receita e se despede: 

- Estou no Biptbip todas as sextas a partir das nove! Passe por lá, porque, no final das contas, “Batuque é um privilégio!"








Comentários

  1. Estou convencida que Dr. Gorberg existe, atende lá em Vila Isabel e provavelmente na sexta irei ouvi-lo no BipBip. Você sempre me convence rs. Um personagem crível, porque metáfora e síntese de tantos personagens reais.
    Muito curiosa a forma de usar a história de fundo para tecer considerações tão contundentes a respeito da barganha cruel do emigrar.

    Vaneska

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    Respostas
    1. Acertou! Eu o consultei há 2 semanas no consultório na Zona Sul.Também pretendo ir vê-lo no BipBip.Ele é real e sua história, tal como me contou é essa mesma!

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  2. O personagem cativa logo de cara. Médico velhinho judeu russo que canta e adora Noel. Mas o que me pegou mesmo foi a possibilidade de se conhecer as “barganhas” e adaptações necessárias para quem vive longe da terra natal. De quebra, ganhamos ainda o contexto histórico do personagem, o dito e o não dito ou o somente insinuado, que dão profundidade ao texto. É coisa fina, sim senhor(a)!

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