ESSA ESTRANHA MANIA DE SER DOIS
Vaneska Mello.
Das
coisas que mais nos ocupamos entre o nascer e o sucumbir sozinhos, está o
delírio pelo fim de nosso exílio.
Mãos
dadas, vidas coladas. Desejos e sonhos comuns. Simbiose de ideias e
pensamentos. Ausência de segredos. Eu não vivo sem você. Sem você nada faz
sentido. E o poetinha ainda canta baixinho: “sem você meu amor eu não sou
ninguém”. Isso parece ser tudo que
buscamos em matéria de afeto. Parece, até percebermos a ausência de nós mesmos
na vida a dois que construímos. Sentir
que somos dois nos dá a ilusão de que estamos a salvo do desabrigo da alma.
Mãos
atadas, vidas cerceadas. Desejos, sonhos, ideais e pensamentos que não se sabe
ao certo de quem são. Ausência de privacidade. De repente a história de amor
consumiu a identidade de dois seres antes completos. Ao faltar o outro só se é
metade de alguém. Talvez ninguém.
Não
é uma regra geral dos afetos. Há pessoas que os vivem de outra forma, mais leve
e plena. Há indivíduos que conseguem enxergar no objeto de sua afeição,
exatamente o que ele é - outro ser. Humano, falível, com seus encantos e
pecados muitos, suas alegrias e dissabores, mas outro. Esse outro é celebrado no que lhe há de
distinto. Ele não é imagem refletida em espelho.
Construir
relações de uma ou de outra forma talvez não seja uma simples escolha. É certo
que nos vendem barato uma delas como opção preferencial. Ela é alardeada,
cantada, imposta. Somos coagidos a
buscar relações em que a tônica seja a simbiose, a mistura, a indistinção, o
aniquilamento do ser individual. Esse seria o tipo de relação sem a qual se é um
fracasso afetivo.
É
natural querermos estar a dois (a três ou a qualquer número que o valha). Mas a
fusão só deveria ser condicionalmente relevada nas altas temperaturas da forja
da paixão, e no curto espaço de tempo que ela pode durar.
Depois,
que sejamos dois - lado a lado. Nunca em sobreposição. Vivendo a profundidade
possível dos afetos mornos. Como seres íntegros. Que se enternecem com as
divergências e se alimentam mutuamente de suas graças.
Parceiros
que oferecem asas. Que abrem portas pelas quais às vezes não podem passar. Que sabem fazer silêncio. Parceiros que
seguirão sós, mas escoltados em seus desamparos.
*Samba
em prelúdio, Baden Powell &
Vinicius de Moraes
Você fala sobre a parceria ideal, quase utópica, de um modo tão fluente, natural, pessoal, que nos faz acreditar realmente que ela pode ser corriqueira, este amor sem cobranças e escambos. Com o seu fraseado bonito demais: "Depois, que sejamos dois - lado a lado. Nunca em sobreposição. Vivendo a profundidade possível dos afetos mornos." Lembou-me no ideal amoroso de Simone de Beauvoir e Sartre que, no final das contas, parece ter deixado bastante a desejar( par ela, pelo menos)
ResponderExcluirInstintivamente, sempre detestei a letra de um "se você quer ser minha namorada".Parabéns, Vaneska!
M. Júlia
Taí um chute na mesmice do que se diz sobre relacionamentos. Mais do que isso, a afirmação da necessidade de ser e estar só em nossa jornada, que pode vir sim, mas não necessariamente, acompanhada de outra(s) pessoa(s) e jamais destruída pela simbiose de ser um.
ResponderExcluirLer os escritos de Vaneska é voar com ela nas profundezas de sentimentos e pensamentos, é conhecer e aceitar a alma humana. Sou fã desde sempre.
Gostei muito da reflexão e da construção de palavras em "Vivendo a profundidade possível dos afetos mornos" e "Parceiros que seguirão sós, mas escoltados em seus desamparos". Elas dão força ao seu texto trazendo-nos uma outra perspectiva sobre a rotina e os relacionamentos e, porque não, sobre os próprios significados das palavras.
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