GEOLOGIA

Carolina Geaquinto

“Ciência cujo objeto é o estudo da origem, da formação e das sucessivas transformações
 [...]” (Novo Dicionário Eletrônico Aurélio, 2004)

Minha irmã já foi palmeira. Eu, rocha. Mais precisamente já fui o morro Pão de Açúcar.

Não tenho dúvidas. A explicação é genealógica, meu pai se chama Pedro que, como se sabe, vem do latim que veio do grego que veio possivelmente da palavra aramaica para pedra – Kepha. Minha mãe se chama Alvanir, um sinônimo de alvanel – aquele que constrói, pedreiro – que vem do árabe al-banná. Até aí nenhum mistério, isso está no dicionário e na minha certidão de nascimento. Não sei por que minha irmã saiu palmeira, deve ser por isso que ela é a mais alta e a mais morena da família. 

Vindo da pedra e do pedreiro, surgiu eu, Carolina. Reza a Wikipedia que Carolina é a versão latinizada do germânico karl – que significa homem forte – e lind – doce. E nascida no dia do padeiro, só posso ter sido o Pão de Açúcar. Feita de carnadura concreta que o vento maleou. 

Mas não é só. Também sei que já fui pedra, pois logo me reconheci entre os meus pares. O Frade e a Freira no Espírito Santo. As pedras de Stonehenge. O empilhamento de pedras do meu marido. Tadásana, a postura da montanha. Os concretos de Brasília. Todas fazem minhas veias vibrar. Sinal de que somos próximas. 

Nunca tinha reparado bem no Pão de Açúcar. Da primeira vez que o conheci, o medo daquele monólito e de sua altura impossibilitou a minha aproximação para além do morro da Urca. Assombrada, me resignei a vê-lo de longe. 

Anos depois, na travessia diária do Rio para Niterói, a pedra não estava no meio do caminho, a pedra era o caminho. Aquela rocha de centenas de milhões de anos que surgiu da separação do que viria a ser a África e do que viria a ser a América. Aquela rocha que não tinha raízes mas estava plantada a quilômetros de profundidade no solo mais fundo do oceano. Aquela rocha que me apontava um caminho novo na vida. Ali, naquele momento, cheguei a pensar se algum dia viria a me acostumar com a sua presença. Não me acostumo, mas nossa relação já não é mais a mesma. Conheço suas fissuras, seu defeito na face leste, um recortado que parece não lhe pertencer. A tatuagem da íbis. O perfil inclinado de Moai. 

A sublimidade do Pão de Açúcar se mostra de todos os cantos e seria ainda maior se não fossem pelos arranha-céus da cidade. Um dia, em Niterói, uma névoa sobrevoava a baía e me impedia de ver a pedra e era como se eu estivesse vazia. De outra vez, uma nuvem deixava ver apenas seu topo e aquele granito — perdurando, sedimentando — não me deixava ruir com abstrações e intempéries tão rapidamente. Ainda hoje sou lenta. É por isso que na próxima encadernação venho baleia. Mas isso, como dizem, é outra genealogia.

Comentários

  1. Carolina, que original este texto monolítico, como a firme e ereta postura da montanha, cheio de belas metáforas, Você, os pedreiros e padeiros. E a pedra do seu caminho. Parabéns!

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  2. Ao se descrever por meio de uma metáfora e da relação com o mundo em volta, a autora permite que a gente vá além das aparências e nos deixe antever sua alma. Um exemplo é a passagem “uma névoa sobrevoava a baía e me impedia de ver a pedra e era como se eu estivesse vazia”. Assim conheci Carolina, que já foi Pão de açúcar e agora é poeta.

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  3. O texto é tão suave que causa espanto ter brotado da rocha. Muitíssimo bem construído,a gente lê sorrindo. Metáforas deliciosas.
    Eu também não me acostumo. Nunca.
    Vaneska

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  4. Oi Eliana e Vaneska, agradeço as belas palavras e o incentivo!

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