MEL

Eliana Gesteira

Estava à espreita no parapeito da janela desde o início da manhã, até que resignada acabou indo se sentar na almofada jogada no fundo da sala. Lá não ficou nem cinco minutos. Andou daqui para ali, percorreu os vãos entre as cadeiras e, por fim, se agachou e colocou a cabeça no chão para chorar.

Depois de um tempo, a barriga roncando, procurou alguma coisa para comer, mas como a comida não lhe apetecia, acabou indo dormir. Ao se deitar de lado, viu no assoalho um brinquedo que foi mastigado sem muito entusiasmo, o que a levou a fazer uma coisa da qual muito gostava, que era brincar consigo mesma. Então coçou a orelha, se cheirou, mordeu um dedo, coçou a barriga e enfim enfiou a cabeça entre as pernas, posição em que ficou por quase uma hora, pois assim se sentia muito confortável. 

De repente percebeu um perfume no ar. Levantou num salto e correu em direção ao quarto, onde parou um instante antes de decidir se subia na cama ou mexia nos chinelos largados embaixo do móvel. Curiosa, revirou primeiro um e em seguida o outro, mas desistiu e foi procurar as cobertas dobradas em cima da cama, onde voltou a sentir o cheiro que ainda a pouco percebera no ar. Agora mais animada, tentou puxar a colcha da cama e acabou se enroscando numa pilha de panos. Apesar disso, foi com satisfação que enterrou o nariz o mais fundo que pode.

O prazer, no entanto, não durou muito, já que começou a sufocar. Desesperada, quis se livrar das cobertas sacudindo a cabeça, mas terminou extenuada pelo esforço. Sem forças para mais nada, gemendo baixinho, se enroscou num pedaço de pano e caiu num sono pesado, tanto, que só a barriga se movia num sobe e desce lento e profundo.

Quando afinal acordou, o interior da casa estava às escuras e as luzes nas paredes traziam a movimentação dos carros para dentro da sala. Seus olhos miraram então a rua que fervilhava e tentaram se fixar em algo lá fora. Percebendo que o refúgio da janela havia se tornado um lugar barulhento, buscou o sofá macio, destino natural para uma longa noite de sono. 

Mal começou a dormir, a porta da frente se abriu. A luz da sala se acende. Um “Mel, vem aqui, vem” soa amigável. Ela inclina a cabeça, fecha os olhos entre às mãos que lhe acarinham com suavidade, abana o rabo e late alto e feliz.

Comentários

  1. Oi Eliana, adorei a perspectiva do conto, o clímax e o final. Pensei que fosse uma gata (tenho gatos).

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  2. Muita observação e riqueza de detalhes na sua descrição dos movimentos da Mel, que no início pensei tratar-se de um bebê, depois de um gato.Final feliz e bem desnrolado. Uma ótica bastante original e interessante.

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  3. Eliana sempre "contando". Gosto do que conta. Identifiquei a protogonista de cara, pois compartilho minha vida com alguns desses seres. Aliás, esse protagonismo da Mel foi inusitado. Insteressantíssimo o exercício descritivo da atividade "não humana".
    Vaneska

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