ABSINTO - Um autoengano Apocalíptico

Maria Júlia Abreu de Souza

(Mini- conto verídico que me foi relatado pela vítima, ou seja, a “autoenganada”). 


Tudo começou no mês de abril do ano de 1986 quando ela entrou em casa e deparou com o marido, aos prantos, em frente à televisão.
-Um reator nuclear de Chernobil explodiu! Você leu?

-Sim, mas também li que a irradiação não deve chegar até aqui!

-E daí? Em Chernobil, Ucrânia, mora Tanya. 

Esclareceu: Tanya, com ipsilone, uma espiã do KGB, fora seu primeiro- ou segundo - grande amor. Conheceram-se em Moscou, paixão fulminante. É, ele tinha o hábito de se apaixonar por forasteiras...

-Sim? E isso aconteceu na fase do primeiro ou do segundo James Bond?

Ofendido, ele ficou calado durante dias. Passou semanas fazendo Cooper, bebendo litros de água mineral, clinicando.

Épocas desditosas. O marido em crise, a filha na puberdade. Novo país, novo empregador, inúmeras exigências. Ela passou a ler e a refletir muito. 

Uma tarde, logo que ele chegou em casa, ela resolveu arriscar

-Ligue para a Embaixada Russa. Eles têm notícias da Tanya! 

Ele entrou e saiu do escritório, a cara compungida: 

-Que desgraçal! Tanya estava entre as vítimas. Nada mais a fazer! 

Foi para o quarto soluçando. Uma hora depois, voltou para a sala:

- Em junho, são as homenagens póstumas ao meu pai, em Tel Aviv. Vamos os três, já reservei tudo. 

- Junho? Mas é justamente o mês da promoção da nova torrada sueca, não posso ir! Se eu for, perco o emprego, tenho um contrato! 

-O quê? Então, você opta por este comercial idiota? Não pelo meu pai? Um dos fundadores da Universidade de Tel Aviv, um herói do panteão israelense? É assim???

Irritado, abriu a geladeira, consumiu o terceiro litro de água, saiu para seu novo hobby, correr diariamente 10 km. Não dormiu em casa. 

Dois dias depois, voltou. Tudo escuro. Embaixo, ninguém. Lá em cima, tampouco. Impaciente, abriu os armários, as gavetas. Vazios. Nas prateleiras, nada. Mas na mesinha, um telegrama da Universidade de Tel Aviv: 

CONFORME A SUA SOLITAÇÃO INFORMAMOS QUE O ILUSTRÍSSIMO O PROFESSOR X É NOSSO DESCONHECIDO. 

E o bilhetinho dela:

UMA ESTRELA CHAMADA ABSINTO...CAI SOBRE OS RIOS... MUITOS HOMENS MORRERAM PORQUE AS ÁGUAS FICARAM AMARGAS. Apocalipse 8:11


P.S. Descobri que Chernobil siginifica absinto em ucraniano. Afasta de mim este cálice! Creio que fiz bem em optar pelas torradas.




Resultado de imagem para absynthe



Comentários

  1. Que história! A informação de que é verídica faz ler com olhos muito mais curiosos. Dá vontade de pedir: conta mais! ...mas o que é verdadeiro? O que é enganoso?

    Você tratou, contando tão bem essa história, de um aspecto muito peculiar do autoengano: o do fazer-se de cego diante daquele que engana...e que, possivelmente, também se autoengana. São inúmeros os motivos pelos quais assim se age nas relações de afeto. Sair da sombra (cito aqui a Ângela) e optar pelas torradas é sempre possível!

    Vaneska

    ResponderExcluir
  2. A história é verídica do começo ao fim, há outras no pedaço que não incluí. Não consegui dar a dramaticidade que queria,pois o relato foi chocante. A realidade é mais absurda do que a ficção. O autoengano foi mais praticado pelo homem, ele é que imaginou a espiã vinda do frio e tal pai do Panteão.Ela se foi mesmo com a filha e as torradas. Vida.
    M Júlia

    ResponderExcluir
  3. Dramático e cômico o texto dá margens a interpretações:
    Homem autoenganado – por não viver o que parece desejar, uma vida rica em paixões, mistérios e ideais.
    Mulher autoenganada - por desistir de tanta imaginação, que, canalizada, poderia tornar a relação louca, mas também muito interessante.
    Leitora autoenganada – por se perder em digressões.
    Eliana

    ResponderExcluir
  4. Menina, a história me deu um nó nas ideias. Fiquei achando que o sujeito era paranóico ou sofria de alucinações. Gostei da sensação que o texto deu de me deixar meio sem chão, meio perdida.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Que bom, eu não acho que contei como queria ou devia!Ele era um mentiroso patológico.

      Excluir
  5. Oi Eliana

    A história é verídica do começo ao fim, há outras histórias no mesmo relato que não incluí. Não consegui dar a dramaticidade que queria, foi mesmo muito chocante. O autoengano foi mais praticado pelo homem, ele é que imaginou a espiã vinda do frio e tal pai do Panteão. Ela duvidou, pensou, investigou e se mandou.
    Você achou cômica? Não foi a intenção. Você achou confusa( digressões), pode criticar, queria saber! Na realidade, trocando em miúdos, ele sofria de pseudologia fantástica, ou melhor, a mentira patológica. Não acho muito interessante, não, para nenhuma das partes.|Umn perigo. Vide os Caescescu da Romenia.

    ResponderExcluir
  6. Confusa, não. Na verdade, existem possibilidades de interpretação no seu texto. Isso é ótimo. Vc quis contar o autoengano do homem, mas vi tb da mulher. Já a comicidade é sua marca. Esse personagem é a maior figura! Não se morreria de tédio com ele rss.
    Eliana

    ResponderExcluir
  7. Sair das sombras e chegar à luz! Quanta estrada temos pela frente!

    Julia, você como sempre penetrando em zonas arriscadas! Como acho difícil narrar diretamente um caso, assim específico, individual... na prática... descrever as forças que circulam nos sentimentos desse casal... retratar aquele momento exato ... do diálogo entre eles... entendo a sua frustração (confessada no seu comentário com a Vaneska), em não conseguir na verdade expressar a fundo a tragédia desse duplo auto engano!!! Você tem razão,"a realidade é mais absurda do que a ficção". Como é difícil colocar em palavras o que sentimos! Quanta distancia há entre o sentir e o expressar em palavras!

    Mas, Julia, você conseguiu... pude sentir o drama dessas duas pessoas aprisionadas em seus auto enganos particulares! Você conseguiu!

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Este comentário foi removido pelo autor.

      Excluir
    2. Obrigada Angela, observação valiosa! Tenho certa dificuldade com diálogos, assim tento praticar mas não foi fácil contar aquela história doida e trágica. A tal zona arriscada, como você diz, do confronto e do convívio entre as pessoas me fascina e amedrontra. Procuro sair pela tangente, sem dramas, pelo humor e ironia, pegando de leve, às vezes, consigo. Sem humor e certa irreverência, fica tdo pesado por demais. Mas esta historia tem mesmo o sabor meio amargo do absinto porque acabei conhecendo os personagens, foi um episódio sofrido.
      M.Júlia

      Excluir
  8. Oi Julia, texto difícil de escrever, em diálogos (que são mesmo complicados de escrever), mas achei que você foi bem sucedida. Gostei da série de autoenganos numa história de espionagem, que ainda termina em suspense, isto é, o (auto)engano não termina. Achei sua proposta muito original.

    ResponderExcluir
  9. Uma história verídica muito surreal. Triste mas contada com leveza e ironia. Me fez pensar no limite entre o engano aceitável e o patológico. O que nos motiva a praticar o engano? Manipular o outro é uma tentação a ser evitada, mas pode ser irresistível para algumas pessoas. O melhor é ser "maluco beleza" e praticar o autoengano, acreditando que a vida é só paz e amor. Adorei a experiência da leitura.

    ResponderExcluir
  10. Tive que ler tres vezes porque era tão irreal que pensei não estar entendendo nada. Mitômanos são bem perigosos, no final a gente nunca sabe o que é verdade e o que não é. É como estar num labirinto!

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Os mais rodopiantes!

A CAIXA PRETA DA MEMÓRIA

PELE

AINDA NÃO