...VIAJAR É PRECISO/ FICAR NÃO É PRECISO

Maria Júlia

“O prazer que extraímos das viagens talvez dependa mais do estado de espírito com que as empreendemos do que do destino que lhes fixamos”. Viagem à roda de meu quarto - Xavier de Maistre (1763)

Citações adaptadas à afirmação de Fernando Pessoa se tornaram lugar comum para todas atividades aprazíveis. Para ele, no entanto, esta sempre fora um ato de fé, uma verdade absoluta. Desde menino era seu desejo, incensado pelos livros de aventuras, aulas de história, geografia, literatura, e pela mãe, sempre insinuando que a grama era sempre mais verde do lado de lá, como querem os ingleses. Apesar de ser brasileira 

Passou o período escolar lendo, relendo, sonhando, colecionando livros de viagem e amigos estrangeiros. Com eles se dava melhor do que com a prata da casa. Um passado com outros hábitos e condicionamentos, gostos e desgostos, idiomas, histórias, lhe parecia fascinante, misterioso, fora de série. O cotidiano era igualzinho, os códigos já conhecidos e senhas facilmente desvendáveis. Não havia margem para fantasias. Então, aos dezoito anos, comunicou sumariamente aos pais, que um dia iria embora de casa e da terrinha.. 

Depois do curso de Direito, a bolsa de estudos para a França abriu suas asas. Ele se foi. Naqueles tempos os estudantes estrangeiros eram tratados com certa consideração, mesmo até a pão de ló. Havia subsídios para tudo: curso de língua francesa, visitas aos castelos do Loire, às praias da Normandia, teatros, shows de striptease em Monmartre. Frequentou tudo isso e mais alguma coisa. Percorreu o Egito, Marrocos, Tunísia, Turquia, terras que poucos ousavam visitar, andou por toda Europa de carona, viveu um alardeado romance com uma trotskista. Quando a bolsa acabou, o dinheiro sumiu, o amor definhou, voltou ao Brasil. 

Prestou concurso para o Itamaraty e iniciou a carreira de diplomata. O trabalho era burocrático. Começou no almoxarifado registrando, entre outros, o número de rolos de papel higiênico nos lavatórios da Embaixada (ria ao contar!). Mas de três em três anos havia um novo desafio. Que mais poderia querer uma pessoa sempre perseguindo o alheio? 

Casou-se duas vezes com estrangeiras, mas sempre quando se sentia fisgado, engolido, caía fora. Não teve filhos. Medo de se envolver, diagnosticavam. E daí, posso? – respondia. Mas, ao contrário do que vocês possam pensar, não era uma pessoa superficial. Tinha afeto pela família, cultivava os amigos. Era uma das pessoas mais centradas que conheci, com sua leveza do ser. Não cultivava obscuros objetos de desejo. Transparente, com um entusiasmo juvenil pelo novo, mudar de país era sinônimo de expansão mental, novos sons, novos sabores, contornos, paisagens. Sempre haveria novas fronteiras para cruzar. As linhas invisíveis entre dois países que demarcavam as culturas, o fascinaram pela vida afora. Sua meta era buscar. Tinha plena consciência de que nunca haveria de chegar. Ou ficar..

Seu livro: Viva a diferença: Mil fronteiras para se transpor antes de morrer é até hoje grande fonte de inspiração para os que vão e os que ficam à volta do seu quarto.

(História de vida relatada convencionalmente, em ritmo de wikipedia. Não fosse ele, meu tio).

Comentários

  1. Compartilho esse desejo do novo. Das novas culturas, novos olhares, novos saberes. Até de quem tá do meu lado.

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  2. gostei da sugestão da história de uma pessoa centrada e ao mesmo tempo um tanto nômade nos lugares e nos afetos. mais interessante ainda saber que vc está relatando a partir de uma memória de uma pessoa que você conheceu. nesse sentido, acho que nossos textos têm algo em comum.

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  3. Você conseguiu contar uma história tão rica e fascinante em algumas linhas. Percorreu infância, juventude e maturidade do tio viajante, homem inquieto, para quem “Sempre haveria novas fronteiras para cruzar”. Ele merece um livro.

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  4. Como bem disse a Eliana, você sintetizou lindamente a complexa e admirável história de seu personagem. Me peguei pensando em outro do Pessoa: "Eu sou o que sempre quer partir.E fica sempre, fica sempre, fica sempre..." Aqui a volta de meu quarto rs.
    Vaneska

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  5. "Um entusiasmo juvenil pelo novo, mudar de país era sinônimo de expansão mental, novos sons, novos sabores, contornos, paisagens. Sempre haveria novas fronteiras para cruzar." Seu texto: tão pé no chão, direto, claro, real... nada fora do lugar... histórias daqueles tempos tão diferentes dos atuais, nos quais os estrangeiros eram tratados a pão de ló na França! Tempos em que podíamos sair e percorrer o Egito, Marrocos, a Tunísia e a Turquia, cruzar suas fronteiras... Que delicia viajar nos sonhos reais de Fernando Pessoa!

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