NÃO É PRECISO DEIXAR MARCAS NA AREIA

Eliana Gesteira
A rua estava silenciosa e iluminada pelos raios de sol que conseguiam romper folhas e galhos em abundância naquele pedaço de chão. O cheiro de cascas molhadas, que se descamavam de troncos úmidos, trouxe de volta a sensação de conforto e segurança misturada a de destruição e ruína. Era desconcertante, mas essas impressões ainda me assombravam depois de tantos anos de página virada.

Cansada da caminhada, sentei numa pedra para apreciar a paisagem e também para visitar o passado.

A primeira coisa que lembrei foi de uma mancha em forma de pássaro na parede do quarto de um hospital. Recordo agora das horas que passei com os olhos fixos na sombra que maculava a superfície branca e nua da enfermaria e de como, apesar de me atrair, aquela imagem me causava tristeza e aflição. Desse transe só saí quando vi meu empresário chegar. Ele me trazia apoio, esperança e um sorriso despreocupado:

- Tudo vai ficar bem. Só precisa repousar e ficar quietinha por uns dias.

Repetia o plano definido desde o começo da roda viva em que vivíamos. Silenciar e descansar. Assim, ao saber da necessidade de cirurgia em minhas cordas vocais, sugeriu logo o cancelamento da turnê. Em seguida, divulgou um lacônico comunicado à imprensa, justificando o afastamento como “motivos pessoais”, e por fim, pediu que me afastasse do público.

Apesar de seus cuidados, uma fã me reconheceu. Estava saindo do hotel para ir ao hospital, quando ela correu em minha direção gritando:

- Isabelle! Isabelle!

Abaixei a cabeça e apertei o passo, mas ela rompeu a segurança e conseguiu me alcançar:

- Não vai nos contar o que está acontecendo?

- Você está cometendo um erro...um grande erro...não se explicar - disse desolada.

- Desculpe, preciso de um tempo. – Respondi num fio de voz, antes que a retirassem.

Não tive coragem de lhe dizer que não seria mais a artista que ela admirava. Minha voz potente e única, além de me trazer fama e riqueza, elevou-me ao patamar do sublime e da perfeição. Como me contentar com a mediocridade?

Segundo o médico, embora pudesse continuar a cantar, meu timbre de voz jamais voltaria a ser o mesmo. Por isso, após a cirurgia, só conseguia sentir raiva. Odiava o que acontecia comigo e ainda mais a curiosidade das pessoas. Logo a solidão chegou exigindo um gole a mais, sonos longos e muita comida. Tinha a esperança do aniquilamento e que ele viesse rápido. Mas esperava deitada, o olhar perdido, esquecendo amores, aplausos, fama. Estava vazia.

Saía somente ao anoitecer para andar pela vila de pescadores onde morava e ninguém me conhecia. Com o passar do tempo, comecei a observar a beleza das pequenas coisas, cheiros e sons vindos do mato, que nunca pensei apreciar. Num desses passeios ouvi o canto de um pássaro surgido das sombras ainda mais escuras que a noite. Ele parecia celebrar a vida em meio ao caos e à escuridão.

Despertada pela exuberância e delicadeza daquele canto, desejei passear na claridade. Levantei cedo e encontrei um céu azul e límpido, encrespado somente por um fiapo de nuvem ao longe, de onde vinha uma aragem úmida e fria. Vesti um agasalho e saí em direção à praia. Chegando lá, tirei os sapatos e fui andando entre a espuma e a areia molhada, deixando que as ondas embalassem meus pensamentos.

Pisava leve, sem pressa e distraída. De vez em quando olhava para traz e via, surpresa, que minhas pegadas haviam sido apagadas pelo vai e vem constante da água do mar. De imediato me vieram os momentos de incertezas e os sonhos perdidos, as dores e as alegrias de minha carreira de artista.
  
Naquele momento finalmente soube. Embora se afirme que a arte é longa e a vida breve, ninguém deveria se afastar de si para carregar o fardo do sucesso e da fama. Não, distinto público, não é preciso deixar marcas na areia, só é preciso caminhar e seguir.

Comentários

  1. Nossa, Eliane, você é uma ficcionista e tanto!Imaginação não lhe falta. Interessante, o que você soube fabricar a partir do tema do mês. Surpreendente. Aos poucos, em ritmo de leve suspense, vai encaminhando seu personagem para a gran finale da diva, para o que " nao era preciso."
    M. Júlia

    ResponderExcluir
  2. Coisa linda esse texto! Me identifiquei muito com essa reflexão de que não é preciso deixar marcas na areia. Estou nessa busca da leveza do não ter pegadas.

    ResponderExcluir
  3. Belo texto. Reflexivo quanto à importância que damos às coisas efêmeras e leve quando percebemos que o que realmente importa é a essência de cada ser. Bjsss

    ResponderExcluir
  4. Lindíssimo texto, " ninguém deveria agastar se de si pir nenhum motivo" pode parexercer ego trio mas não sra mesmo verdade esse um caminho da felicidade? Parabéns amiga! Muito bon

    ResponderExcluir
  5. Sim Eliana, você é uma ficcionista! Apreciei a precisa construção dos cenários e da complexa personagem. Linda abordagem da desnecessidade de deixar pegadas na areia. Que mensagem poderosa nesses tempos em que só os pódios parecem importar. Também quero acreditar que necessários são os caminhos.
    Vaneska

    ResponderExcluir
  6. Seu texto nos pega com leveza pela mão ao longo da "rua silenciosa e iluminada pelos raios de sol"... Nos faz sentir a "sensação de conforto e segurança misturada a de destruição e ruínas... Com delicadeza nos conduz com maestria e brilho ao longo de toda a narrativa até uma profunda reflexão final:"Não é preciso deixar marcas na areia, só é preciso caminhar e seguir". Parabéns, belíssimo texto. Obrigada, um oásis nesse nosso deserto atual.

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Os mais rodopiantes!

UM SONHO DE VIAGEM

CHEGAR E PARTIR

11 SUGESTÕES PARA FICAR DE PÉ, SEGUIDAS DE UMA SUGESTÃO EXTRA