EU NÃO TE OUÇO, VOCÊ NÃO ME OUVE

Angela Fleury

Animal acuado reage ao diferente. 

Não quero ouvir. Não é preciso ouvir. Não é preciso ver. Não quero ver.

Não é preciso ver o outro como alguém dotado de um significado, de um sentido que eu preciso desvendar, como alguém que talvez tenha uma necessidade que talvez eu possa ajudar. Não é preciso entender como cada um de nós possui a sua própria singularidade. Não, se o outro não repete exatamente o que eu espero, não quero nem ouvir, nem precisa falar, não vou te ouvir.

 Perdi a alegria, não consigo mais me expressar livremente, minha cidade também está triste, estamos todos desolados, estagnados dentro de uma perplexidade já totalmente instalada.  Não é preciso ver a beleza da diversidade humana, a complexidade misteriosa de cada ser, não, não é preciso se indignar, não é preciso questionar. Não é preciso parar para prestar atenção ao outro, siga em frente, não é preciso olhar para o outro. Deixe o outro pra lá.

Não preciso conhecer a sua historia, nem você a minha, suas ideias e suas reflexões não me interessam, prefiro me apertar em meus próprios pensamentos, me fechar atrás de meus muros, interditar minhas fronteiras, me encerrar em convicções rígidas e fortes, não quero me modificar através do conhecimento do outro. É preciso erguer muros altos de desprezo pelo diferente. Não, não preciso ver o outro. Não quero saber do outro. Eu passo e não te vejo você passa e não me vê. Eu de um lado, você do outro.  O barulho em volta é enorme eu não te ouço, você não me ouve. 

É preciso ficar quieto, seguir em frente nessa trilha já previamente projetada, sem desvios, sem alternativas. Não me venha com suas opiniões, não me traga circunstancias novas, não me conte a sua historia, não te conheço e já te odeio. Tenho medo do diferente, do surpreendente, daquilo com o que não concordo. Não suporto nada que não seja meu próprio eco. Não olho para os lados. Já aprendi a viver no escuro das minhas mais resistentes certezas. 

Não é preciso tirar a venda. Diga-me que não é preciso desvendar o outro.  Deixemos tudo como está. Quem é você? O que você sente? O que você quer? O que te falta? Nada disso preciso saber. Nada que venha de você me interessa, se você for o diferente. Você não precisa saber de mim, eu não preciso saber de você. Não precisamos saber um do outro.  

Recue diferente, tenho medo. 

Comentários

  1. Acabo de ler teu texto, Angela. Impactante. Atual e verdadeiro. Você aborda um tema que me é muito caro, que me absorbe e ncom o qual me identifico bastante: eu, o outro(ah, Sartre, será mesmo o outro o nosso inferno?), a singulariedade, a semelhança que nos (des)une.
    "Quem é você? O que você sente? O que você quer? O que te falta? Nada disso preciso saber. Nada que venha de você me interessa, se você for o diferente. Você não precisa saber de mim, eu não preciso saber de você. Não precisamos saber um do outro". Falou. O que interessa é a nossa imagem e semelhança,"dentro de uma perplexidade já totalmente instalada". O Brasil que se perdeu. E nós, o grande Homem Sapiens, onde ficamo? Parabéns!
    M. Júlia

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  2. Ah Julia, você uma das exceções dessa regra... uma pessoa que sempre com muita sensibilidade para ver e escutar meus textos com tanta delicadeza e atenção! nem tudo está perdido... há lindos oásis nesse deserto.. bjs e obrigada pelo seu olhar atento e sua escuta apurada.

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  3. Você acabou de descrever a nova a triste ordem social. O alívio está em olhar para os lados e ver que há pessoas maravilhosas que adoram as diferenças, abraçam os distintos, os outros que são o oposto do eu.

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  4. Crônica forte e contundente sobre nossa época.
    Me lembrou o Poema de T.S. Eliot, Homens Ocos
    "Nós somos os homens ocos
    Os homens empalhados
    Uns nos outros amparados
    ….
    Fôrma sem forma, sombra sem cor
    Força paralisada, gesto sem vigor"

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  5. Impactante. Descrição de nossa ordem atual. Contundente. Furto as palavras chave dos demais comentários. Acrescento: Preciso. Reflexão mais que necessária. A tomo fortemente pra mim. Até que ponto estamos nos afastando dos outros por não mais suportarmos o confronto e onde começa nossa arrogância? Merece ser muito lido. Parabéns!
    Vaneska

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