É PRECISO HAVER DIAS DIFÍCEIS

Carolina Geaquinto

“O dia mais difícil da minha vida” parece tema de redação de volta às aulas, no mesmo tom de “minhas férias” ou “minha família”. Há qualquer coisa aí que sugere a expectativa certeira de uma narrativa que se acomoda, que se repete e se imprime a exaustão.

O dia mais difícil da minha vida não foi o dia em que minha mãe morreu. Porque eu não me lembro desse dia. Eu não lembro quem me disse: “sua mãe morreu”. Eu não lembro onde eu estava, o que eu fazia. Todo mundo sabe o que estava fazendo quando aconteceu o 11 de setembro. Mas eu não sei nada sobre mim num dia da minha própria vida.

Eu me lembro de vê-la no caixão, mas não sei se foi no mesmo dia em que ela morreu. Eu me lembro de vê-la no caixão com o vestido mais bonito que tinha, um vestido claro, meio champanhe, cheio de florezinhas rosas e lilases, há uma foto dela com esse vestido, posso te mostrar. Na foto ela está viva (as pessoas estão vivas nas fotos?). Eu me lembro da palidez disfarçada e da pele fria e dos algodões nas narinas e aqueles algodões nas narinas foram a maior violência que eu já tinha visto até então. A maior violência e a minha mãe com o vestido que eu mais gostava.

Eu não lembro quem me disse “sua mãe morreu”, talvez porque eu não tenha escutado. Assim como tudo que lembro fiz questão de esquecer. Talvez se eu esquecesse “sua mãe morreu”, a morte não tivesse acontecido. Quando eu não conseguia esquecer “sua mãe morreu”, imaginava também morrer e então seríamos todas mortas em algum lugar, eu também estaria com o meu vestido preferido, um vestido laranja bem forte e bem diferente da cor suave do vestido da minha mãe, mas igualmente com florezinhas, estas brancas. Nunca mais tive um vestido laranja com florezinhas brancas. Não tenho uma foto pra te mostrar.


Às vezes parece que minha mãe não morreu há 23 anos. Parece que ela morreu hoje. Parece que ela morreu agora. Há 23 anos, assim como hoje, o céu era azul sem nuvens. Mas de hoje eu me lembro. Hoje eu me levantei sozinha, adulta, na minha casa com meus três gatos, tomei um café e eu mesma me disse (ou a mulher disse à criança?): “sua mãe morreu”. De hoje eu me lembro. Hoje é o dia mais difícil da minha vida. 

Comentários

  1. Me emocionei! Linda forma de viver a memória e inventar que a fronteira entre a vida e a morte pode ser apenas uma frase, um mantra ao avesso. Talvez fosse bom inventar outro: minha mãe vive. Vive no seu eterno amor por ela.
    Nem sei o que farei quando essa frase que ressona em sua memória for oferecida a mim feito banquete frio.

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    Respostas
    1. "Talvez fosse bom inventar outro: minha mãe vive" - que bonito e sensível! :)

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  2. Que texto bonito e intimista, Carolina, co belas metáforas. A gente se sensibiliza com o seu tema, os diálogos entre a menina e a mulher de hoje e entende perfeitamente o mecanismo do esquecimento das lembranças doídas. Minha mãe está presente em mim diariamente mas eu a perdi adltas, só há dez anos. Mas há outros fatos em que eu também "assim como tudo que lembro faço questão de esquecer. Valeu!
    M. Júlia

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  3. Reli, porque na primeira leitura a emoção me pegou. Me transportei no tempo, há dezessete anos. Minha mãe.
    Dizer o que? Porque se digo triste e comovente é dizer pouco, muito pouco. Suas palavras me foram mais reais que o real.
    Só posso dizer Arte. Porque foi na veia, no coração e na alma.

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  4. Nossa, também precisei ler mais de uma vez, pois a emoção não deu margem pra análise nenhuma. Na verdade, na segunda também não deu. É lindo. Só mesmo talento e extrema sensibilidade para transformar um tema tão doído em arte tão delicada. Você escreve bonito demais.
    vaneska

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  5. Não sei o que dizer, não sei comentar seu texto com palavras, só sei senti-lo... e o senti profundamente. Sensações e sentimentos que me fizeram perder as palavras, perder a cronologia do tempo... quando minha mãe morreu? Ela morreu há dezessete anos atrás ou morreu hoje? Não me lembro! Não sei, só sinto. Parabéns, texto forte e bonito.

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