NAUFRAGAR É NÃO PARTIR

Angela Fleury


Observar como estou resistindo ao outro e a mim mesmo, como lido com o fora e com o dentro. Perceber o quanto estou reagindo e como estou sempre em relação a alguma outra coisa diferente de mim mesmo. Considerar a experiência das associações dos conteúdos que circulam em volta de vários núcleos, em volta dos mais diferentes “eus”. 

 Refletir. O que estou escolhendo? A que deus dentro de mim estou atendendo? O que tiro da frente para não atrapalhar? O que acolho e o que desacato? A que devo atentar? O que devo velar? O que outro está preferindo? A quem o outro está escutando? Entender que as energias entre o eu e o outro quase sempre surgem frouxamente ligadas. Meditar sobre esse jogo de indeterminações de intensidades variadas que estão quase sempre em contradição.

Aprender que este navegar nem sempre terá os ventos a favor. Aceitar que uns são tufões, que encrespam o mar e aumentam o tamanho das ondas e elevam o nível das águas, e que alguns outros, ao contrário, sopram como uma brisa que acaricia e refresca. Ter a certeza que nunca estaremos certos do exato rumo a ser tomado. Reconhecer que estamos sem bússola a nos nortear, mas lembrar de que é preciso partir, que não há como parar.

Admitir que, de fato, permanece o medo do que não reconheço. Ver que nem sempre saberei exatamente aonde vou chegar já que o grande fosso entre as causas e as consequências de tudo o que faço inviabiliza o saber exato do que acolher e do que ignorar.

Mas mesmo assim confiar, acreditar enfim que é preciso caminhar, se deslocar na direção daquilo que, muitas vezes, parece ser inicialmente uma total abstração, uma completa escuridão, compreender que a harmonia surgirá com o movimento, assim como na música, surgirá exatamente deste combate de tensões. Alcançar, por fim, que naufragar é não partir.

Comentários

  1. Angela você (sempre) navegando, indagando, questionando, buscando, sugerindo, sempre vai longe...bem longe. Gosto!
    M.Júlia

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  2. Muitas indagações, questionamentos e por fim a conclusão, o reconhecimento da precariedade das respostas "...enfim que é preciso caminhar, se deslocar na direção daquilo que, muitas vezes, parece ser inicialmente uma total abstração, uma completa escuridão". Bela sacada.

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  3. O texto me fez refletir sobre como o desequilíbrio (a falta de controle) é necessário ao mesmo tempo em que o equilíbrio (controle) também. Parece que sempre estamos nos equilibrando entre esses dois pólos - "admitir o medo", isto é controlá-lo, e "permanece o medo", a zona de desequilíbrio.

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