Cacos

Eliana Gesteira

“... A palavra fere, machuca, dói. Proferida no calor aquecido por mágoas ou ira, penetra como uma flecha envenenada. Perdura no sentimento dilacerado e reboa, por um tempo que parece infinito, na mente atordoada pelo jugo que se impõe. Só o coração compassivo, e a meditação livram a mente de rancores e imunizam-nos da palavra maldita".  Frei Beto em O ofício de escrever.

Embora escolhidas a dedo, não foi estilo que L viu em minhas palavras. A linguagem refinada não evitou o tremor no canto dos lábios e aqueles olhos, não os que brilhavam para mim até ontem, mas aqueles olhos em busca do chão e das miudezas espalhadas pela sala.

Até tentei dizer que não disse o que disse, mas a nódoa já manchara o amor nascido há pouco. Talvez o tempo. Um tempo que passasse para dissolver a mágoa produzida pelo verbo e que trouxesse, quem sabe, o silêncio e o sossego em olhos ainda enamorados. Podia esperar que assim fosse, que houvesse perdão, que houvesse generosidade e que o tempo curasse. Só não podia esperar que fossem apagadas as palavras que ainda rebatiam nas paredes lisas e limpas de nossa casa.

Mas dali saí. Queria encontrar os olhos que foram meus. Que deles guardava lembrança viva, mais viva e intensa que o peso das palavras. E cheguei ao lugar onde seu olhar me habitou. Cheguei sozinha. Tão raro isso. Éramos quase xifópagos, metades e nós. E agora os pedaços, meu pedaço, só, partido pelas palavras.

Palavras só minhas. Palavras saídas de minha boca para atingir o que pensava ser meu. Mas vejo, me vejo, e a ele também, agora que as palavras não podem voltar tal qual um gênio para dentro da garrafa, agora que elas quebraram o encanto e trouxeram o desassossego. Talvez dessas palavras nasça um amor feito de cacos, como somos feitos todos sempre. Cacos. Talvez possamos nos encontrar lá adiante. Lá no lapso do tempo, ausência reconfortante, onde moram as palavras e o silêncio.