CHICO E SUAS MULHERES NO BONDINHO DE AMSTERDÃ

Maria Júlia

No bonde elétrico que vai do bairro universitário ao centro da cidade, duas garotas brasileiras muito jovens, de vozes moduladas e sotaques sulistas, isto é, de articulação clara, érres nítidos e caprichados, comentam a obra de Chico, uma terra ainda incógnita para elas.

Sentada bem atrás delas, faço tudo para não perder uma palavra. 

-Você sabia que isso era dele? diz uma delas, e entoa baixinho: 


Procurando bem
Todo mundo tem...

Sala sem mobília
... Goteira na vasilha
Problema na família
Quem não tem

Só a bailarina que não tem – a outra faz o refrão.


Bigode de groselha
Calcinha um pouco velha
Ela não tem

_ Nossa, a Adriana Calcanhoto tem voz de criança! 

_ Só a bailarina que não tem- repetem as duas rindo.

_ Futucando bem...estou pensando no mestrado sobre as mulheres dele. Foi minha mãe que deu a ideia. Mas, cara, como é que a gente transmite o Chico em holandês? Como vou dizer, sem ficar brega: eu vou rasgar meu coração pra costurar o teu?

Ela tira um bloquinho da bolsa e lê algumas anotações:

O olhar de uma mulher faz pouco até de Deus
Mas não engana uma outra mulher

_ As mulheres são muito diversas: medrosas, duras, românticas, e valentes como as de Atenas. A gente tem Ritas, Angélicas, Lígias, Carolinas, Genis, Iracemas. Donas de casa, prostitutas, mulheres fatais, mulheres- meninas, estamos todas nas suas letras, uma por uma. Já reparou que muitos temas são: perda,saudade, fuga, traição ... tem uma, engraçada, a história de um cara que larga tudo e vai para o Tocantins, lá ele nota que o chefe dos Paritintins está de olho na sua calça lee, fica aflito, liga para a mulher, daí vem um japonês atrás dele...

Parecem estar relatando o ocorrido com um amigo íntimo.

Depois, tem outra, bastante trágica, de um homem que passa a vida ralando feito louco para depois morrer na contramão atrapalhando o tráfego. Ganhou um prêmio do sindicato. Acho que também foi do período de ditadura. Tem tanta música da época! Dizem que “Angélica”, uma mulher que perde seu filho, foi feita para a estilista Zuzu Angel, o filho dela morreu na ditadura.

Continua a ler:

Em “Joana, a francesa”, ele mistura o francês com o português e as palavras têm sentido nas duas línguas: acorda, acorda, acorda soa como d’accord, de acordo.

_ É demais... demais, repete a amiga, maravilhada.

_ E o que você me diz da Ana de Amsterdã? Da cama, da cana, sacana, fulana.

Li que ele usa a assonância, uma figura de imagem, repetindo os fonemas. Ah, ainda tem a “Barbara”, a mulher do Calabar aquele considerado traidor porque passou para o lado dos holandeses. Na minha tese, esta também entra para ficar. Vai fazer sucesso por aqui,não acha? E a Iracema, tão delicada e nostálgica? Ela queria estudar canto lírico lá fora, mas acaba na faxina. Iracema voou para a América... vê um filme de quando em vez, não domina o idioma inglês, lava chão numa casa de chá... Me lembra das brasileiras ilegais que trabalham na faxina aqui. É muita mulher, muita letra! suspira.

Quieta, no banco de trás, sou toda ouvidos, não ouso interromper esta intimista turnê pelo universo do poeta. No bondinho que percorre ruas e canais desta cidade a do norte europeu, desfilam em carne e osso, à minha frente, todos os personagens de Chico. Uma viagem e tanto à terra brasilis.

Chegando à Estação Central, descemos as três, meditativas e contentes. O inverno pode até ter vindo para ficar no reino (des)encantado dos Países Baixos, mas pela parte que me toca, o meu dia já está ganho.

Comentários

  1. Jurandyr
    Adorei o texto. Trouxe maravilhosas lembranças das letras do Chico Buarque! Quem viveu essa época, sabe o que o Chico representou para a cultura brasileira! Esses momentos inesperados, de surpreendente beleza , em que incognitos fazemos parte de uma situação unica , são realmente um presente dos céus...

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  2. Que crônica gostosa de se ler, Julia. Imagens ótimas e situação bem descrita. Você soube aproveitar e desenvolver bem o tema. Adorei.

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  3. Gosto muito de crônicas de "conversas ao entorno". Quem de nós não se perde de vez em quando nos assuntos alheios...rs? Acho que o Antonio prata tem uma crônica falando desse prazer.
    Seu texto é uma delícia, principalmente para quem é fã. Muito boa a sua forma de contar o "ouvido" Impossível ler e não sair cantarolando.
    Vaneska

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  4. Alguém já se referiu a esses assuntos alheios como papo-aranha. Aquele que te envolve e você não consegue deixar de ouvir mesmo sabendo que não é educado. Gostei dessa expressão.

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  5. Julia seu texto sempre gostoso de ser lido! Me lembrei das caixinhas de costura de sua tia... das fitas coloridas... das conversas ao redor da costuras.. outro texto seu! Esse agora, assim como o texto da Elisa, nos leva, como em um filme, para o bondinho de Amsterdã e para aquela situação gostosa de ficar ouvindo a conversa dos outros... Ótima crônica, pude ver o bonde atravessando as lindas ruelas da cidade holandesa, você sentada atrás das duas moças... tudo ao som do nosso Chico. Uma delícia de viagem!

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  6. Li o texto deliciada e pensando "será que aconteceu mesmo ou foi inventado?"/ mas decidi que não importava e sentei-me no banco de trás, ao lado da Ju/
    e fiquei conhecendo vários versos de Chico, ainda desconhecidos pra mim/ amei a viagem/ 'brigada, Ju!/

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