DOIS IRMÃOS

Eliana Gesteira

Olhos, só pálpebras, miram o chão. Às vezes abrem e vagam desinteressados. O dia passando e Cristina ali calada. Estava assim desde que ouviu: “Fica com ele! Tu, o menino e a casa. Tudo!”.

Há dois meses, quando o cunhado João chegou, foi uma festa. Cristina fez carne assada, Pedro, o marido, comprou bebidas e o filho Marcelo era só alegria por finalmente conhecer o tio de quem tinha ouvido falar muito.

A história que mais gostava era aquela em que o pai, ainda menino, assumiu a culpa pelo sumiço de umas cocadas que seriam vendidas na feira. Apesar da surra que levou, ele não entregou o irmão para a mãe, mulher que criava sozinha dois meninos no cafundó do Judas.

Os anos se passaram e o mais velho precisou ir para o sul trabalhar. Novamente juntos, Pedro quis poupar João do sufoco que passou ao chegar no Rio de Janeiro. “Pode levar o tempo que precisar pra encontrar trabalho. Não vai fazer serviço pesado e mal pago não”, disse, esperando que o caçula, mais instruído, tivesse melhor sorte que ele.

Era costume de Pedro, ao chegar do serviço, sentar na soleira da porta e ficar matutando enquanto fazia rabiscos no chão com um graveto. Foi numa noite dessas que lhe chegaram de dentro de casa risos abafados da mulher e do irmão. Curioso, entrou e se juntou aos dois para assistir TV. Cristina, que também consertava as roupas da família, deixou cair sem querer uma tesoura. Os irmãos se abaixaram aos mesmo tempo para pegá-la, mas João, com agilidade, conseguiu recolher e entregar a tesoura à cunhada, que sorrindo agradeceu: “Obrigada, João”.

No domingo Pedro costumava sair com o filho para jogar uma pelada, mas Marcelinho, que disputava um game com o tio, naquela manhã não quis ir. Pedro não disse nada e saiu chutando pedras, só retornando com o almoço já posto. Sentados, lado a lado na mesa, a mulher e o irmão conversavam animadamente, tão próximos que quase se tocavam.

No dia seguinte Pedro demorou para chegar em casa e quando finalmente apareceu, veio tropeçando nas próprias pernas e gritando: “Mulher, oh mulher, vem cá, me traz a janta”. Sem resposta, foi direto ao quarto, onde se deteve ao ver que ela dormia. Por um triz não deitou a seu lado e a abraçou, por pouco não fez carinho em seus cabelos como sempre fazia. Em vez disso, cambaleante, acordou-a com chutes na cama, dizendo que ficasse com o irmão, que ele iria embora.

Durante alguns dias Cristina permaneceu por horas olhando o chão onde antes o marido riscava. O cunhado, no primeiro momento, também calou-se, mas vendo que seu silêncio de nada adiantava, procurou puxar conversa, oferecendo ajuda com as despesas da casa e com as lições do sobrinho, se desdobrando em cuidados como que pedindo desculpas pelo irmão.

Uma noite, muito tarde, João entrou em casa de mansinho. Ao passar pela cozinha percebeu que a cunhada o aguardava para o jantar. Sentou e perguntou como tinha sido o dia de trabalho, se a condução estava cheia e se o chefe tinha entendido as faltas. As palavras de João chegaram como água para quem tinha sede. Cristina levantou a cabeça, segurou seu braço, escorregou a mão até o ombro e lhe deu um abraço. Ficaram ali prolongando aquela sensação de segurança, o coração aos pulos. Passaram pela sala sem fazer barulho para não acordar o menino e entraram no quarto. Cristina deitou-se primeiro. Depois João, que pressionou-a contra o peito e lhe deu um longo beijo.

Naquela mesma noite Pedro voltou e foi direto ao quarto. Entrou com cuidado e sem acender a luz. Abriu a janela e esperou que o frescor da noite lhe desse um pouco de coragem para pedir perdão. Olhou a lua, depois o quintal lá fora tão quieto e pensou no balanço que prometera ao filho. Virou-se rindo para dentro do quarto e imediatamente uma zoeira lhe subiu a cabeça, fazendo com que corresse até a cozinha.

O barulho acordou João, que levantou a tempo de ver o brilho da faca sobre Cristina. Ele pulou em cima do irmão na tentativa de pegar a arma, mas Pedro, movendo-se com rapidez e tomado pela fúria, riscou a lâmina no pescoço de João. Ao perceber o que tinha feito, o irmão morto caído a seus pés, Pedro desferiu em si mesmo um golpe profundo.

Da rua chegaram os vizinhos, do sofá da sala o filho. Todos pararam na porta ao ver Cristina abraçada aos dois homens. Em volta deles, o sangue. Um único sangue grosso e vermelho escorrendo pelo chão. 
  

Comentários

  1. Texto forte e intenso que desde o início vai desvendando a tensão, O título, talvez por causa do livro de Milton Hatoun também anuncia a tragédia. A frase final, muito boa. Os irmãos de sangue unidos "em um único sangue grosso e vermelho". Ciúme é brabeza!
    M.Julia

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  2. Muito interessante sua forma de contar a história. A enigmática e impactante introdução, o desenvolvimento do texto que descortina pouco a pouco a tragédia. A maldita "flecha negra do ciúme" ,deixando "almas esticadas no curtume". Faceta lamentável das relações humanas. Um texto forte e bem escrito.
    Muito bom quando aparecem histórias por aqui. Sempre leio com olhos de aprender.
    Vaneska

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  3. Muito interessante sua forma de contar a história. A enigmática e impactante introdução, o desenvolvimento do texto que descortina pouco a pouco a tragédia. A maldita "flecha negra do ciúme" ,deixando "almas esticadas no curtume". Faceta lamentável das relações humanas. Um texto forte e bem escrito.
    Muito bom quando aparecem histórias por aqui. Sempre leio com olhos de aprender.
    Vaneska

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  4. Um drama muito bem contado/ fui conquistada já com a 1a frase, que achei perfeita/ um desenho na minha frente!/ e percorri todo o texto com a sensação de que, naquele suspense, não tinha palavras desnecessárias/ Lidia

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  5. Eliana resgata uma narrativa antiga, que nos consola e nos leva de volta a um tempo que parecia perdido. Nos tira da solidão da informação rápida e descartável de nossa era pós moderna e nos envolve novamente na lenta narrativa dos detalhes surpreendentes e das descrições reveladoras minuciosas! Seu texto parece deixar o tempo mais lento. Obrigada Eliana

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