A VOLTA
Luiza Monteiro
Outro dia voltei. Queria rever in loco o que me fora tão presente por dias, semanas e anos.
Não sei bem o que buscava. Mas, havia uma ânsia de recompor o cenário da minha infância. A retina em sua memória redesenhava os detalhes das paredes, dos quadros, até as ilusórias silhuetas de montanhas, prédios e animais, que eu, criança, acreditara ver, relutando contra o sono, e que nada mais eram que linhas da madeira na porta do meu quarto.
E lá estava eu: pedindo informação aos porteiros enquanto a mente, esta, se deslocava... no tempo.
Minha casa – um apartamento na Rua Xavier de Toledo - no que fora um elegante canto do centro da capital paulista, estava abandonada, num prédio que mostrava uma pujança degradada como todo o entorno. Com o mote “São Paulo não pode parar”, o centro se deslocava para outro ponto e mais outro, deixando um rastro de construções mancas e manchadas pelo acelerado desprezo urbano.
A chave! Não tinham a chave? Não dispunham dela para abrir o local? Fizeram uma busca um pouco teatral na minha percepção...
Pensei: os porteiros deram uma solução para me poupar da provável sujeira de uma casa sem ocupação por anos, claro, deveria de ser isso. Afinal, como contei-lhes que havia vivido lá quando pequena e que gostaria de rever o que fora meu lar, eles mostraram simpatia, mas, disfarçaram, afinal era um incômodo o que minha proposta significava. Sem dar detalhes informaram-me que ali se instalara, até mais ou menos 1985, um serviço de rádio, que trabalhara por alguns anos, noite e dia, pois era central e alto...e me davam várias justificativas técnicas das vantagens da altura para a rádio captar e transmitir. Sim, era alto, um belo exemplar das construções da passagem da década de 40 para a de 50. Paulistas acreditam ser possuídos pelo progresso e é necessário expressar esta conquista acumulando não só dinheiro e objetos de luxo, mas andares sobre andares, em direção aos céus, como se a arquitetura nos conduzisse à bonança, ao futuro, ao eterno.
Não por escolha, mas por questões práticas, ligadas ao trabalho de meu pai, vivi a maior parte de minha infância nesta ostentação do moderno.
Fôramos imigrantes na cidade de um país continental, que abrigava uma babel emaranhada de sotaques, todos acolhidos nos nossos ouvidos e na urbe em expansão. Assim nos acostumáramos a ver diferenças como algo normal. Não era somente a sonoridade dos gauchescos bá e barbaridade frequentes de meu pai, mas, também, do oxente pernambucano de minha mãe, assim como dos uais mineiros do vizinho do lado. Isto sem falar do japonês, o da feira, que desconhecia os erres que sobravam na fala de D. Sarah, aquela da loja de perfumes, enquanto a libanesa, a do armarinho, desenrolava histórias em que eu nunca sabia se os personagens eram menino ou menina, já que as vogais não se acomodavam tão bem como as suas linhas e novelos de lã, colorindo o balcão de vidro que me distraía mais que a confusão de gêneros na narrativa dela. Com os portugueses, franzíamos os olhos para entender melhor o jeito de falar e degustávamos seus cantares enquanto faziam a faxina do prédio, já meu pai preferia mesmo saborear o gosto do vinho alentejano, que, às vezes, compartilhavam com ele. No mercado, em que eu acompanhava minha mãe, havia de tudo: reluzentes caquis, flores de alcachofras, rubros rabanetes, cada vez maiores, como a cidade, que crescia para os lados e para o alto, com a industrialização a mover a autoproclamada locomotiva do Brasil. São Paulo era cinza de céus, mas tinha aromas, cores, sabores e sons que eu aprendera a me deliciar.
Enquanto os funcionários se eximiam de qualquer responsabilidade sobre aquela parte do edifício, que eu tanto queria entrar, a memória desengavetou a lembrança do panorama noturno que eu me acostumara a ver lá do alto, subindo na ponta dos pés na mureta do terraço. Letreiros e desenhos, em gás neon, piscavam e se transformavam, pintando a noite paulistana com desenhos estilizados que, a meus olhos de criança, pareciam-se com rabiscos meus e que aos dos parentes e amigos da família provocavam muitos ais. Diziam ser a beleza da modernidade.
Insisti. Estava determinada a visitar minha moradia de pequena. Foi quando ficou claro que eu causava desconforto. As pessoas que aí no apartamento trabalhavam, pouco falavam, diziam os servidores, e, de repente, foram embora e ninguém mais ocupou o espaço. No meio da discussão, um deles soltou algumas palavras reveladoras, cheias de olhares de reprovação dos demais: “era pessoal da polícia, de empresas, sei lá, moça, ninguém nunca mais entrou lá dentro, não. Era da OBAN.”[*]
Tive um sobressalto, como se tudo tivesse parado, preso no ar, cortado por uma lâmina.
Sabe-se lá o que tramaram entre aquelas paredes em que dormira ao embalo da voz de minha mãe e onde brincara de casinha de plástico e bonecas de papel? Ter conhecimento que ali – justo minha casa de menina que agora desejava rever - havia virado centro de operações de rádio da OBAN, durante os anos de chumbo de 70 e 80, era por demais perturbador.
Vim em busca de recompor lembranças puras e pueris.
Voltei com uma perda. Um oco. Um soco. Amargo. Senti o que era uma profanação. Não só ao meu lar de recordações. Pior: imaginei a quê havia servido aquele local. Para outros. Para pessoas que sequer conheci. Não importa. O passado mais recente que o meu se interpôs. Meus planos, esvaziados. Meu lugar de memórias, contaminado. Sonhos... estilhaçados. Minha viagem às referências do que fora meu mundo de infância se transformou.
É...acontece. Ciclos. Tudo pode. Brasil. Tempos idos e vindos. Nos mesmos espaços... diferentes viagens. Quantas voltas estamos a dar?
Luiza Monteiro
Rio, 2 de novembro de 2016
[*] OBAN – Operação Bandeirantes - era uma organização que funcionava como centro de informações, investigações e ações, montada pelo Exército do Brasil em 1969, que a coordenava e integrava o combate à guerrilha urbana e à resistência ao autoritarismo nos anos da ditadura cívico-militar. Utilizava métodos de inteligência, sequestro, tortura e assassinatos. Financiada por empresários, a OBAN depois foi integrada a outras forças da repressão, dissolvendo-se em 1985. Seu membro mais famoso foi o major Carlos Alberto Brilhante Ustra, recentemente mencionado com orgulho no Congresso Nacional por um deputado.
Do particular para o geral, essa viagem de retorno a uma moradia de infância, mistura história, antropologia, afetos e emoções. A revelação final é impactante.
ResponderExcluirGostaria somente de sugerir que o texto fosse mais enxuto. Ou ainda melhor, que ele se multiplicasse em diferentes relatos, tantas foram as situações e acontecimentos interessantes apresentados. Quem sabe um livro?
Eliana Gesteira
Texto rico e bem descrito! Gostei de muitas imagens: saborear os cantares, luzes e letreiros se confundindo com seus rabiscos, reconheço no sentimento de profanação que sentimos ao visitar antigas moradas. No seu caso, uma verdadeira profanação. Você nos remete ao presente assustador em que vivemos.
ResponderExcluirM.Júlia
Gosto muito do seu jeito de escrever. Esta história é incrível. Engraçado a pouco tempo pensei em fazer a mesma viagem mas ainda não a fiz. Na próxima viagem ao Brasil farei, você me inspirou. Nunca se sabe o que vamos encontrar...
ResponderExcluirE Morais
Muito interessante a forma como vai descrevendo a busca por esse "algo perdido" e termina por descobrir outra perda, talvez maior. O relato - conteúdo e forma me agradaram muitíssimo!
ResponderExcluirVaneska