UMA VIAGEM DE TREM

Eliana Gesteira

O trem passou sem parar por uma estação vazia. É noite e todos dormem dentro do vagão, menos o passageiro que anda devagar pelo corredor e que se segura cada vez que um solavanco o joga de um lado para outro. A luz repentina que veio de fora destacou na escurão a silhueta daquele homem e tornou visível por uma fração de segundos o prateado dos cabelos ralos, o azul lustroso do terno de corte impecável e o brilho dos fechos dourados de sua maleta de couro. São três e meia da manhã e o senhor de terno elegante não parece ter sono ou vontade de dormir.

No exterior à composição ferroviária, além do negrume da noite, uma bruma espessa encobre a paisagem. Somente a memória de viagens anteriores, onde era possível ver campos verdes e casas solitárias com mulheres pendurando roupas ao sol, traz um vestígio de alegria aos olhos cansados do homem. A lembrança de dias ensolarados devolve também um pouco de calor ao luxuoso vagão, cujo ambiente altamente refrigerado parece um pouco exagerado para aquela época do ano.

O silêncio é quebrado apenas pelo trac trac do trem, levando o homem a notar os viajantes que dormiam embalados por aquele som constante e cadenciado. À direita olha uma senhora com mãos abandonadas sobre um livro aberto; à esquerda, uma jovem com tapa-olho e fone de ouvido; mais à frente um homem com um corpanzil que mal cabe na poltrona estreita. No ar, cheiros indefinidos sugerem uma mistura de perfumes sutis, grama cortada e casacos guardados.

Em pé, diante daquelas pessoas, o passageiro procurou lembrar o momento de sua partida. Havia, claro, acenos de mãos, esbarrões de malas e beijos de casais apaixonados e havia ainda uma mulher que a distância foi deixando cada vez menor até que sumisse no horizonte. Lembrou, quando o trem já estava em velocidade, de ter visto pela janela nuvens vagando em um céu de azul profundo e vacas perambulando pachorrentas em pastos verdinhos.

Agora, caminhando ali em meio a pessoas que dormiam um sono profundo, o viajante enfim encontrou alguém acordado. Era uma senhora de cabelos pretos e pele muito clara, vestindo uma túnica branca transparente, pela qual uma luz tênue vinda do alto deixava entrever um corpo magro e pálido. A mulher apontou um lugar vazio a seu lado e, embora ela causasse um certo desconforto - “vestida no limite da decência", pensou o homem -, o cansaço falou mais alto e ele aceitou o convite para sentar.

Mal fechou os olhos, a mulher puxou assunto, demonstrado estar bem desperta naquela madrugada fria:

O senhor parece ter algo muito importante aí, disse com um sorriso vago.

O homem segurou firme a pasta que carregava e respondeu:

Penso que isso não é de sua conta, minha senhora.

Fique sossegado, não pretendo roubar e nem fazer mal nenhum. Não tenha medo.

Não tenho medo! Só quero que saiba, não há nada de valioso aqui ou que possa lhe interessar.

Não vamos brigar por isso. Para quebrar o gelo... me diga seu nome.

...

O homem puxou pela memória, mas não conseguia recordar seu nome e nem sequer a imagem do próprio rosto. Assustado, deu um beliscão e perguntou a si mesmo:

Estou sonhando?

A mulher sorriu, piscou um olho e disse:

Digamos que o senhor foi convidado a viajar através de um túnel que o levará a um mundo parecido com o que vivia antes.

Como assim, vivia, mundo? Aliás, quem é a senhora?

A misteriosa mulher pousou a mão ossuda no braço do passageiro e soprou em seu ouvido:

Durma, meu caro, durma o sono profundo. Sua viagem vai começar.


Comentários

  1. Eliana sempre surpreende com o cenário e os protagonistas que parecem sair de um thriller sutil, puxado ao surreal. Gostei: das mãos abandonadas sobre um livro aberto, cheiros indefinidos sugerindo uma mistura de perfumes sutis, grama cortada e casacos guardados, a mulher vestida no limite da decência. Você sabe contar uma história e deixar o leitor intrigado se perguntando " o que será mesmo?"
    M. Júlia

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  2. !Gostei muito dos detalhes descritivos dos personagens. Uma história bem contada e intrigante
    E Morais

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  3. Eliana, que texto surpreendente! Instigante e com um tom misterioso em palavras muito bem escolhidas. Seu texto possibilita viajar por nossas memórias e vivenciar lembranças de sentidos, uma verdadeira sinestesia. Belo conto.
    Suzana Costa

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  4. Sim! Como disse a Maria Julia, você sabe contar uma história! Sua capacidade descritiva é mesmo digna de nota. Ambientes e personagens construídos deliciosamente.
    Vaneska

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