O HORROR DE CONHECER

Vaneska Mello

“... fé é isto: o pensamento 
A querer enganar-se eternamente
...
Cerra teus olhos profundos 
Para a verdade que dói. 
A Ilusão é mãe da vida...”

Fernando Pessoa - O Horror de Conhecer

Se a verdade liberta, tanto mais fere. Quase nunca é o que se deseja. Quase sempre é o que se evita. A verdade é um imbróglio, uma enrascada. Ela é cheia de contradições. Humano, demasiado humano querer escapar. 

Outro dia mesmo inventei que eu era aquela da foto retocada. Não tinha olheiras e nem tantos anos de vida. A do espelho pela manhã, passei a ignorar.

Inventei uma carreira de sucesso baseada em sinais exteriores e definições genéricas. Está toda no linkedIn, com palavras bordadas a mão. 

Criei poderes sobre nada e ninguém.

Eduquei - muito bem educados - filhos igualmente inventivos. Todos eles bem sucedidos. Nossa bem-aventurança pode ser confirmada nas redes sociais.

No passado adoeci de amor por quem eu nem amava. Não sem primeiro inventar mil sintonias dissonantes.

Muito antes fui imensamente amada, por tudo que minha vaidade quis.

Me agarrei nas bandeiras que escolhi e não enxerguei virtudes para além delas.

Inventei coincidências, harmonias, compatibilidades. Inventei pessoas completas.

Elaborei um passado com outras cores.

Concebi toda uma realidade, porque nem mesmo ela suportou ser verdade. 

Não há que haver julgamentos ou repreensões. Somos todos realidades imaginadas, tocando enganosamente a vida uns dos outros. Mais entendimento e compaixão. É um dos jeitos de resistir.

Porque a vida
a vida
a vida, Cecília
a vida só é possível reinventada.


*Reinvenção, Cecília Meireles

Comentários

  1. Essa ilusão gostosa de tudo que achamos que deveríamos ser. Ah se todo dia soubéssemos de alma inteira que de fato somos o melhor que poderíamos ser... seríamos mais motivadas para sair da ilusão e nos tornarmos para além do que de fato somos.

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  2. "Inventei uma carreira de sucesso baseada em sinais exteriores e definições genéricas. Está toda no linkedIn, com palavras bordadas a mão". "Concebi toda uma realidade, porque nem mesmo ela suportou ser verdade". "Me agarrei nas bandeiras que escolhi e não enxerguei virtudes para além delas".
    Poderia citar várias frases suas mas achei essas muito próprias para o momento atual. Você tem essa sagacidade e capacidade, Vanessa, de -sem bordados e frescura- mas, delicadamente, por os pontinhos nos "is" de um a um, desvendando, ou melhor, expondo nossas fraquezas e vulnerabilidade. No amor, no autoengano e outros. (Eu, já tenho que explicar e contar tudo, exponho meus personagens com todas as letras, o que, por vezes, acho meio injusto). Muito bom final, com a reinvenção da Cecília. Vida que segue e nos nos reinventando. Me lembrou de um filme de Tarantino com a mulher fazendo plática. " have to reinvent myself", dizia.
    M. Júlia

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    Respostas
    1. Júlia, eu aprecio o seu contar e nem de longe acho que você entrega fácil assim suas histórias. Seus personagens são muito bem construídos, mas não sem sutileza, você vai deixando um monte de "fios soltos" para o seu leitor, algo muito bem vindo. Exemplo interessante disso foi seu texto dessa rodada. Eu li algumas vezes e demorei a juntá-los rs.
      Vaneska

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    2. Obrigada, fico muito contente que pense assim mas às vezes tenho certas dúvidas
      Júlia

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  3. "A verdade é um imbróglio, uma enrascada. Ela é cheia de contradições." - isso é a mais pura verdade.
    Gostei da visão que o texto propõe para conceitos/sentimentos/experiências geralmente tidos como bons, necessários, sábios, mas que até isso pode ser um ponto de vista, até isso pode ser reinventado.

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  4. Poesia, filosofia e prosa muito bem proseada, seu texto, Vaneska, me lembrou os verso de Paulo Leminski:
    "nunca cometo o mesmo erro/duas vezes/já cometo duas três/quatro cinco seis/até esse erro aprender/que só o erro tem vez".
    Eliana

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  5. Já de cara me perguntei: "O Horror de conhecer"? Não seria a "delicia" de conhecer? Ou preferimos viver como quem dorme, dentro de realidades construídas, consciente ou inconscientemente? Até quando vamos acreditar em nossa falsa "imagem/foto retocada"? Até quando nos "agarraremos às nossas bandeiras construídas"? Até quando vamos conseguir sustentar nossas maravilhosas "bem-aventuranças nas redes sociais?" Até quando vamos confiar nas "sintonias dissonantes"? Nas "coincidências inventadas... e nas "realidades imaginadas"? Até quando, Vaneska? Será que Cecilia tinha razão? Será que a vida só é possível reinventada?
    Adorei!

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  6. A realidade é uma ilusão. Isso é libertador e assustador ao mesmo tempo. Mas para mentes criativas como a sua, sempre é possível reinventar o sentido da vida através da arte. Lindo texto.

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  7. Muito interessante seu texto por abordar um tema que estamos vivendo no dia a dia. Penso muito nisso , nessa banalização geral da imagem, nesse mundo onde todos somos fotografos e todos somos modelos. Onde nos podemos reinventar constantemente. Colocando na balança acho que essa nova possibilidade abriu mais portas positivas que negativas, muitas vezes a mudança vem de fora para dentro. Se o espelho real ( como o de Eliana em seu texto ) já não agrada porque não mudar a imagem ao contrario de evitar o espelho? Querer é poder e tudo começa quando projetamos um sonho!

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