PERFEITA ORDEM

Eliana Gesteira

Abriu a porta, andou devagar até a cozinha e pôs as sacolas na mesa. Na casa fechada um cheiro enjoativo, quase imperceptível, pairava no ar. Em um canto qualquer da mente registrou “lavar o chão” e logo suas mãos ligeiras iniciaram criteriosa arrumação das compras no armário.

Ela própria não gostava de se arrumar e deixava reflexos prateados para trás quando passava em frente ao espelho - presença outrora amiga, ele agora reinava sozinho na parede da sala . Mas não se queixava, nem da aparência ou qualquer outra coisa. Só sorria um sorriso triste ao se sentir constrangida, procurando, nessas ocasiões, agir com naturalidade para não transparecer representar.

Tinha nome de flor, Rosa. Era casada, sem filhos e gostava de comprar anjos de porcelana, que podiam ser vistos enfileirados no aparador da sala de jantar. Nos dias de semana, lá pelas quatro da tarde, se sentava perto da janela para contemplar a rua e também sua coleção de anjinhos. Nessas horas pensava vagamente em Deus, admitindo a possibilidade de ter sido esquecida por ele. Mas, conformada, se sentia satisfeita com a discreta ordem que conquistou.

Rosa olhava a casa modesta arrumada e quase não lembrava dos dias que sonhara com escadarias, vestidos longos e salão para dançar. Agora lhe dava prazer contemplar a ordem revelada nos pequenos detalhes, a cama feita com lençóis impecavelmente limpos e os vidros das janelas minuciosamente lavados. Assim, não entendia porque a lembrança desses sonhos de colegial ainda lhe enchiam os olhos d'água.

Na esperança de desvendar-se, Rosa procurava respostas no único espelho que não podia ignorar, o olhar do outro. Por isso tentava, às vezes, conversar com vizinhos que encontrava no mercado, esforçando-se em aparentar tranquilidade. 

Uma vez decidida, contava até três e se aproximava com uma pergunta qualquer:

- Tempos difíceis, não? 

- Um absurdo! - sempre lhe diziam.

- A vida é assim.

- Que nada, minha senhora...

E seguiam-se queixas e mais queixas, com ela ouvindo paciente e quieta. Mas assim que podia, escapava:

- Desculpa, preciso ir - balbuciava com um sorriso desbotado no rosto.

Saía apressada, pés ligeiros e decididos, sabendo onde chegar. Só o pensamento vagava perdido, ora debatendo-se entre o certo e o errado, ora tentando distinguir o falso do verdadeiro. Recriminava-se

Já dentro de casa, aliviada, sentava diante da janela e se acalmava olhando a vida lá fora e usufruindo a quietude do lar. 

Mas havia ocasiões em que um desassossego chegava sorrateiro, acompanhado de um pressentimento estranho. O de que existia um segredo escondido nas coisas. Rosa por vezes o via aparecer na luz suave sobre os vasos de plantas, na cortina sacudida pelo vento ou na fumaça do café fazendo rodopios no ar. Nessas horas, Rosa até tentava pegá-lo, mas desistia assustada. Não queria parecer louca aos olhos de quem a visse caçando ar. 

Quando isso acontecia, procurava voltar para a vida palpável. O tapete, a cristaleira, os móveis a espanar. Sim, os móveis:

- O que você acha, Juca, de trocarmos os móveis da sala? Parecem velhos e tristes. 

- Hã...

- Os móveis da sala, tristes...

- Hein? Pega o jornal pra mim? E vai se deitar, você parece cansada.

- Tem razão.

Antes de sair, parou, olhou a cozinha e comentou consigo mesma:

- Preciso limpar o chão.

E foi dormir.


Comentários

  1. Visitei a cada através de suas palavras. E os suspiros escondendo segredos no ar...

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  2. Sutil autoengano este seu, ou melhor, da Rosa. Você tem essa qualidade nos seus textos, as coisas não são totalmente claras, evidentes, sempre há um mistério, um desconforto nos seus personagens que nem a ordem caseira, nem os anjos podem apaziguar. O seu autoengano nos é mostrado por frases, como
    -...Só sorria um sorriso triste ao se sentir constrangida, procurando, nessas ocasiões, agir com naturalidade para não transparecer representar.
    -... que existia um segredo escondido nas coisas.
    Acho interessante esta sutileza da narrativa, é preciso lê-la mais de uma vez. Eu, pela parte que me toca nesta Roda, já me acho muito pouco sutil, sempre conto e soletro tudo... gostaria de poder ser mais misteriosa. No entanto, tal como a Rosa, e muitas de nós, também sonhei com escadarias, vestidos longos e salão para dançar. Daquele filmes enganosos de Hollywood. Parabéns Eliana!
    M. Júlia

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  3. Autoengano disfarçado na ordem, nas coisas que a rodeiam. Ótimo conto.

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  4. Assim como a Júlia, precisei ler e reler para para apreender o que não estava dado na superfície da história contada. O autoengano que evita espelhos, que simula interesse genuíno, que se dissimula num apreço pela ordem. Sim, um conto bem contado, cheio de ricas sutilezas.

    Vaneska

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  5. "Perfeita ordem, perfeita desordem.Criteriosa arrumação das compras no armário... Sorria um sorriso triste para não transparecer representar... mas conformada, se sentia satisfeita com a discreta ordem que conquistou... lhe dava prazer a ordem revelada nos pequenos detalhes...só o pensamento vagava perdido, ora debatendo entre o certo e o errado....
    A guerra dos opostos, a ordem e a desordem... o certo e o errado... Eu como sempre mergulhando nas profundas águas de Rosa, no belo e profundo texto de Eliana. o que falar depois desse testemunho de alma escancarada?

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  6. Nossos sonhos não morrem, mesmo quando desistimos deles...continuam lá...escondidos. Rosa tenta se satisfazer com outras coisas, mas é um autoengano. Buscar a felicidade e a realização através da ordem e móveis novos pode dar uma sensação de preenchimento do vazio que insiste em nos habitar. Somos todos como a Rosa.
    Silvia Sobral Vallim

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  7. Coincidencia escolhemos o mesmo nome para as nossas ora patéticas , ora trágicas protagonistas. Gostei muito. O detalhe do espelho "presença outrora amiga, ele agora reinava sozinho na parede da sala", adorei. Deveria ser tudo ao contrario, o ser humano envelhecer procurando romper a rotina sempre, colecionando novas experiencias, novos sentidos.

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