Ela e Arnaldo

Vaneska M.

Terça-feira normal, de uma semana comum, de um mês ordinário. Ela pega o ônibus de sempre, destino: trabalho. Não usual mesmo só o recém adquirido hábito de acompanhar-se  do Arnaldo pra espantar o tédio do viagem.  Arnaldo, recém-organizado, na playlist do celular tinindo de novo.

Ele canta baixo pra ela, num sonzinho quase de vitrola:

_ “ela quer viver sozinha
sem a sua companhia
e você ainda quer essa mulher...”

Surge talvez um saxofone, o som aumenta de repente. Ela e Arnaldo vão começar o animado bate-papo!

Aquele instrumento de comunicação, porém, não se restringe à prosa com Arnaldo. O telefone toca. Toca a música. Como atender se Arnaldo ainda tá ali? Num ímpeto desastrado, saca os fones do aparelho. O som íntimo e reservado toma conta do ônibus inteiro:

­_”ela goza com o sabonete
não precisa de você
ela goza com a mão
não precisa do seu pau”

_Porra, Arnaldo! Canta baixo! Para de cantar! Não me core de vergonha. Como eu desligo você?

Arnaldo nem dá bola. Atrapalhada ela recusa a ligação e tem a genial ideia de repor os fones no seu devido lugar. Arnaldo, aos berros, foi contido. O ônibus até então silencioso e sonolento, parecia mais animado. Cochichos, risinhos. Olhares de reprovação que ela nem via, mas farejava.

_ Como você me faz uma dessas, Arnaldo? Esse ônibus não estava pronto para um “goza” tão cedo assim, quanto mais para um “pau” de supetão.

_ “Meu pé minha mão
meu pai minha mãe
meu pau meu pai”

_ Qual é Arnaldo? O João tá colocando palavras na sua boca. Não tem essa de colocar tudo no mesmo saco. “Meu pai, minha mãe” não teriam virado tantos pescoços na minha direção. Nem teriam feito o cara aqui do lado me olhar com essa cara sacana, nem a moça ali do lado com cara de inquisidora.

_ “Eu não acho mais graça nenhuma nesse ruído constante
que fazem as falas das pessoas falando, cochichando...
como uma risada na minha orelha, ou como uma abelha, ou qualquer outra coisa pentelha,
sobre as vidas alheias, ou como elas são feias”

_ Pois é, tem razão Arnaldo. Também já ando pelas tabelas com tanto buxixo. Quem são essas pessoas todas? O que sabem de mim? Por que deveria alguma satisfação a qualquer delas? E se não gostam de orgasmos e pênis, e se ofendem com gozos e paus e se me julgam. Problema de cada um deles se querem ser, que pena, juízes das vidas alheias.

_ “Se disparada pelo amor
Palavra-bala
Na boca do ditador
Toda palavra cala...

Quando não se tem tesão,
Toda palavra morre”

_ Tem razão, Arnaldo. Não serei eu a ditadora da palavra pau, nem da palavra goza. Não serei a ditadora de palavra qualquer.

_”E Estamos Conversados”.
 

Comentários

  1. Amei seu diálogo! E que as palavras e as mentes sejam livres!!!!

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  2. Já é a segunda vez que o Arnaldo aparece num texto aqui da Roda ;)
    Adorei, achei super criativo!

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  3. Não conhecia essas músicas do Arnaldo Antunes - aliás em termos de música parei ali pelos anos 70.
    Genial o diálogo entrelaçado com as músicas dele. Despudorado e atual, mostra que o isolamento e a intimidade vão perdendo a batalha para a exposição pública geral.

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