UNS TROÇOS

Maria Júlia

Personagens: policial- detida - intérprete. Cena: a delegacia central de Amsterdã. Uma mulher jovem, magra, morena, com um bebê de poucos meses no colo. Um homem, no final dos trinta, recostado numa mesa. Uma moça de óculos sentada na frente dos dois.

-Moça, pergunta para ele porque estou aqui.
-Moça, diz para ela que quem começa com pergunta aqui sou eu e mais ninguém.
-É só ele que começa com perguntas, você espera para responder.

A mulher se remexe na cadeira e encara o policial:
-Tá certo mas meu filho tem hora, não tá vendo que ele tá nervoso?
-Diz para ela responder tudo certinho para poder ir embora. Explica que se ela não quiser depor contra o marido, a lei não obriga.
-Depor o quê?
-Falar contra seu marido.

Muchochos:-Não vou falar nada, nem contra nem a favor, depende.
-OK, pergunta o que é que aconteceu na terça-feira dia oito, de tardezinha.

-A gente estava descansando, de repente, a polícia entra lá em casa, joga tudo no chão, abre todas as gavetas, pega um pacotinho e leva meu marido, o Jan.

-Mas você sabe porquê, não é?
-Fiquei sabendo depois, tava por fora de tudo.
-E a sogra também não sabia?
-Como é que eu vou saber se ela sabia? É muito sonsa e fingida! Eu só vi que tinha um cofre onde o Jan botava papéis, coisas de valor, uns troços.

-Que coisas de valor?
-De valor, de valor... tipo assim, umas alianças de ouro da mãe, documentos, passaportes, tem muita gente roubando passaporte. O do Brasil, é popular, sabia?.

-E aí, eles entraram, abriram o cofre, pegaram o pacotinho e levaram o Jan?
-Foi.
-E você, onde estava?
-Eu tava lá no quarto com o Janzinho, dando de mamar, levei um susto danado!.

-Você sabe porque está aqui?
-Ué, não é para responder essas suas perguntas?

O homem simula impaciência:
 -Então, você pegou no pacotinho?
-Não, nunca peguei não, ai, tou ficando nervosa com esse homem. Nem vi.

-Então, como é que ela explica a impressão digital no pacote?

-Fica quieto Janzinho, não chora, meu filho. Impressão de quem, moça?
-Impressão digital: dos seus dedos no pacote.
-Pode ser que a impressão esteja lá, mas eu juro que não peguei em nada não.

O policial fecha a cara:  
-Ah, moça, acho que já sei o que pode ter acontecido. Eu estava dormindo, alguém, poder ser a minha sogra, tirou o pacote do cofre e botou o meu dedo lá. Aí saiu a tal impressão. Foi isso!

-Então, foi assim: você estava dormindo, alguém entra no quarto com o pacote, e põe o seu dedo no pacote? Moça, diga para ela o seguinte:

-Daqui a alguns dias ela vai receber ordem de prisão, tudo indica cumplicidade e conivência. Nesse meio tempo não pode sair da cidade. O marido já está preso.

Soluços: -E meu filho, fica com quem, hein? Com aquela diaba da avó? Não posso ir para uma prisão perto da minha mãe, na minha terra? Moça, pede pra ele, por favor.  É tudo por causa desta tal de impressão digital naquele troço?

Ela sai aos prantos. O menino berra, imitando a mãe. O policial, irritado, pega uns papéis da mesa, desliga o computador, fecha as gaveta, se dirige à intérprete:

-Desculpa a pressa, moça, mas já é tarde. Faz favor de preencher o formulário completo e pôr seus dados bancários. Antes de fechar a porta, se vira e formula o veredito: Incrível, só muda mesmo é o cenário, a conversa é sempre igual!

Comentários

  1. Adorei a ironia: a conversa é quase surreal, mas para o policial parece sempre igual. Como disse o Salvador Dali: "não há nada mais surreal que a reliadade". Muito bom!

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  2. Malandragem brasileira em uma delegacia de Amsterdã. Diálogo realista entre os personagens, o seu polícia, a ré e a mediadora dos dois, a intérprete. Estilo "patrulha da cidade", programa de rádio dos velhos tempos. Bacana.

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  3. Onde já se viu deixar o filho com aquela diaba que rouba digitais na calada da noite...rs?! A ironia é mesmo uma delícia. Bacana travar um diálogo entre três interlocutores, em que um é só ponte...mas eu acho que, no final, o veredicto é dele rs.
    Vaneska

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