O SISTEMA DO NOSSO DIÁLOGO

Carolina Geaquinto


— Foda trabalhar com a recém senhora ex. E se cobrar ser fodão e não sentir nada.
— Foda mesmo... Mas vocês não tinham voltado?
— Tínhamos... Segunda da semana passada. Domingo por telefone. Uma segunda fofa. Uma terça legal. Na quarta o pau comeu de novo. Discutimos muito.
— Que pena... — disse Z quase imperceptível, mas Y mal ouviu e logo emendou:
— Ou melhor, sempre discutimos muito. Na quarta, fomos embora tristes, mas ainda sem forças pra mandar se foder. A quinta continuou com esse clima de enterro, íamos fazer algo leve que não exigisse demais de nossos espíritos. Porém um problema de trabalho causou uma desconfiança acerca da minha pessoa e aí o pau comeu.  Nos primeiros dez minutos a sós. Inviável —– Y destilou seu drama.
— Então vocês terminaram? — disse Z, cobrindo sua ansiedade com uma fina camada de empatia. Y parecia estar no modo automático:
— Mesmo assim continuamos com o programa e fomos a uma confeitaria. É isso mesmo: o pau comeu como louco e nós comemos os doces. Nossa última refeição.
— Discutir em uma confeitaria? — a pergunta de Z foi meramente retórica.
— De repente, já depois do fim, bem depois do fim, eu chorando na frente de todos lá na confeitaria, mas na minha, e ela comendo, digna como uma lady, ainda me faz uma ultima cobrança: “pô, era pra ser um momento legal... Por que você tá chorando?”. Fiquei até sério.
Z riu de nervoso.
— Vi que era otário mesmo. Aí depois de depois do fim, há algo em mim que quer ser bem compreendido, sei lá o porquê, redimido no universo. Enfim, já calmos, depois da tempestade...
— Vocês... vocês terminaram? — Z falou quase não querendo interromper, quase não querendo ouvir a resposta.
— Expliquei que o que me irritava era ela repetir certas coisas quando ficava magoada. Era só me dizer o que houve e eu entendia, fazia um esforço e pronto, queria que ela se calasse. Mas ela repetia porque não aceitava que eu tivesse entendido assim. Acho que ficava indignada. Então simples: “me mande pro inferno, não faça-o em mim”. Enfim, ela repetia. Daí eu fiz diagramas no guardanapo explicando o sistema do nosso diálogo. Se isso sim... vai-se pra frente, mas não... Se não... Tem outra saída, que ela não dava, não me dizia o que fazer. Me sentia encurralado. — e largou sobre a mesa a caneta e o desenho do diagrama que estivera fazendo enquanto falava.



Z ficou olhando, tentando entender onde aquilo ia dar.
— Isso era sempre que tivesse algo a resolver. O que fazer então? — Y puxou de volta o guardanapo e apontou para as fases como se fosse uma cadeia lógica de um jogo de tabuleiro — O castigo era ouvir e ouvir. Até ficar nervoso. E ser grosso. E perder a razão.
Y fez uma pausa dramática. Enquanto isso, Z desenhou no guardanapo em que ele reproduzira o esquema do diálogo e empurrou-o de volta a Y:



Y respirou fundo:
— Foi mais ou menos isso que ela entendeu. E perguntou, talvez achando que tivesse outra saída, "como eu posso...". Eu achei que era pra eu responder e falei: “é só não repetir quando eu digo que entendi, só”. E ela: “como eu posso achar que ainda dá...” Isso eu não sabia e achava que ela não pararia de repetir. Eis que me liga meu brother.
— Quem? — z não esperava por isso.  
— Amigo meu do escritório, pra quem eu tinha ligado antes quando a gente tinha terminado, pra encher um pouco a cara e não ficar só. Ele ligou e eu falei: “cara, vai lá pra casa”. Aí ela ficou puta e foi embora.
— Acabou assim? — falou Z, como quem tenta não sentir nada.
— Ela ainda disse que “agora que estamos nos entendendo e você marca coisas com o teu amigo, minha amiga me chamou pra fazer algo e eu não fui”. Ah, claro, íamos sair sem brigar. Ficou putaça. Não atendeu meu telefonema naquela noite nem na sexta de manhã. Ontem veio trabalhar e falou só de trabalho. Sinto uma sensação escrota mas deve ser normal.
— Normal é. Vocês estavam juntos há quanto tempo?
— Não sei se é preciosismo meu... Que não fique ranço e tal. Mas foda-se, é esquisito mesmo isso. Cinco meses, no dia seguinte do pau.
— Mas que cisma você tá com 'pau'!
— Da porrada.
— Ranço sempre dá e vai durar cinco meses, o mesmo tempo que vocês ficaram juntos.
— É. Não sei se é uma mania minha querer um último ‘foda-se'.
— Precisa ser com ela? 

Comentários

  1. Quem nunca presenciou/viveu um círculo vicioso-neurótico, atire a primeira pedra!

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  2. No primeiro guardanapo pensei...exato! No segundo dei uma gargalhei alto. Que bela habilidade em tocar pontos sensíveis das relações "amorosas" de maneira tão criativa, divertida e, por que não, didática.

    Mais uma vez acho que nossos textos estão em sintonia, com palavrões... e paus...rs.

    Vaneska

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    1. Obrigada, Vaneska. Também percebi a sintonia :)

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  3. O Y é tipo homem falante. Chega a ser fofo de tão chato. Coitado do Z, viu até a DR virar ER, esquema da relação. Mas estou sendo dura com o Y, relação a dois é mesmo uma espiral de entendimentos e desentendimentos.
    Texto pleno de humanidade. Mais uma bela sacada da jovem Carolina. Parabéns.

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