A PRIMEIRA VEZ DE UMA PORÇÃO DE COISAS NUM SÓ DIA
Maria Júlia
No meu colo está o envelope que eu devo entregar à aeromoça no decorrer do longo percurso de quase 2000 km, com uma carta informando-a de que tenho direito a um lanche durante o voo.
Meio sem jeito, entrego-lhe o envelope que ela abre, lê, e com um ”thank you”, põe o papel no bolso do avental da American Airlines, desaparece da minha vista, e possivelmente, do avião. O recomendado lanche por abaixo-assinado simplesmente não vem. Numa tentativa de comunicação, resolvo testar meu inglês e pergunto as horas ao meu vizinho. Grande decepção! Constato que meus anos de Instituto Brasil-Estados Unidos, ainda não me permitem entender o seu palavreado ininteligível, mas quem sabe, talvez tudo seja efeito dos fusos horários dele, do avião, da minha pessoa. Com meus 17 anos, estou desafiando a minha insegurança e timidez, me aventurando sozinha por este estranho trajeto. É minha longa marcha para o Oeste na aeronave que me conduz do Rio para New York e depois, para a terra dos índios sioux, dos canyons... e de mexicanos .
O avião faz escala numa cidade fora do meu mapa. Faminta, sedenta e esbaforida, me dirijo ao banheiro onde me deparo com portas misteriosas que só se abrem com a inserção de moedas depositadas numa grande maquininha quadrada. Vendo o meu embaraço, uma senhora de alma condoída, me passa um dime. Saio, me posto em frente ao portão de embarque, sem desgrudar olho do mesmo, com medo de perder a viagem. Mais horas de voo. Tomo um café aguado e um biscoito generosamente oferecido pela companhia. Enfim, chegamos, e eu desembarco, no alto dos meus 17 anos e dos sapatos de salto agulha, hoje em dia, chamdo de estileto. Visto um traje feito pela nossa fiel costureira Isabel, um lindo tailleurzinho azul de mangas curtas e golas tipo envelope, segurando a nécessaire, um objeto quadrado e volumoso, totalmente dispensável, mas imprescindível no enxoval de viagem. Vou andando pela pista, ao encontro da família americana que me acolherá por um ano. Gente alta, usando calças blue jeans, como da moda local; o pai, com um chapéu de cowboy, me estende a mão, alegre e risonho. Só eu é que não estou para brincadeiras. Consciente de que minha elegância não combina com a deles, ou melhor, que estou totalmente fora do contexto, minha sensação de fome, sede, e estranhamento, toma conta do meu estômago e do meu peito. Estou doída e exausta. Meu desejo é dar meia-volta, correr pela pista afora, pegar o avião de volta, ir para minha casa, estar com minha mãe, minha família, o meu Rio. Em vez disso, covarde, opto por entrar no carro. Como ficar insensível a este imenso Cadillac de rabo de peixe, azul e prateado? No caminho de casa, eles param num enorme supermercado, o primeiro que vi na vida, onde passam horas comprando os mantimentos da semana. E eu atrás deles, de salto número sete, em estado de profunda catatonia, me deixo levar por seções nunca dantes navegadas, tal como por exemplo, a de congelados. Saímos carregando uns sacos horríveis, grandes, abertos, de cor bege, desses que se vê nos filmes. Estranhei a mercadoria não ser embrulhada adequadamente. Chegando à casa, um bungalô com um jardim aberto para as montanhas, vamos jantar. Um (o meu primeiro) hamburgo gigante me faz passar mal, vomitar, e cair, depauperada, na cama.
Este relato é dos tempos das diligências quando não havia coaching para “choque cultural”, era tudo mesmo na marra, no peito e na raça. No meu caso, para concretizar a metáfora, isso se passa no espaço e no tempo das diligências, um ano que há de nortear toda a minha vida.
Hoje, fazendo a balança dos custos e benefícios, vejo que ainda tenho um certo fraco por índios, cowboys e... mexicanos.
Narrativa minuciosa sobre as angústias e alegrias da menina Júlia. Me senti lá ao seu lado querendo ajudar. Seria parte de um livro de memória?
ResponderExcluirsim, um pouco intimista, tudo foi mesmo assim.
ResponderExcluirMuita coragem, menina! Que Maravilha! Tive muitos estranhamentos quando morei em Portugal, mas eu não era tão jovem. ;) É uma experiência e tanto!
ResponderExcluirDelicia de texto Julia! Flui e desliza na medida em que vamos lendo, muito bem escrito! Cheio de verdade! Me identifiquei muito porque também cheguei bem jovem aos EUA, também no tempo das diligencias, e tudo foi surpreendente e novo! Sair do Rio nessa época e chegar nos States foi com certeza uma experiencia até hoje inesquecível! Adorei!
ResponderExcluirJúlia e suas deliciosas histórias. Sempre bem estruturadas. Acho que mais que "coaching para choque cultural" o que mais temos hoje é uma enorme facilidade de não nos espantarmos e surpreendermos com o novo, além de um certo desrespeito por terras estrangeiras. Triste de quem age assim.
ResponderExcluirVaneska