OS PRIMEIROS MINUTOS
Angela Fleury
Talvez
seja a hora mais difícil, uma incrível mistura de sentimentos indefinidos. Um momento de passagem de um
mundo para o outro, que vai de uma misteriosa imprecisão, passando aos
poucos para uma nebulosa penumbra até que se descortina em uma luz clara a qual os olhos nem sempre conseguem suportar. Tudo se passa em câmera lenta,
reina um desconhecimento, uma desconfiança do que
possa ou não vir a ser. Um tatear, como se eu estivesse entrando em um quarto
escuro ou, ao contrário, saindo desconfiadamente na direção de uma forte luz. Cenários que vêm e fogem da mente, imagens desconexas que escapam e que
insistem em reaparecer que se misturam e se embaralham que são turvas, que se
ocultam e se mostram sem que eu tenha o tempo para
lhes dar um sentido.
Estou em pleno espaço entre, nem de um lado
nem do outro, em pleno transcurso.
Aos
poucos, bem aos poucos, mas ainda de maneira desconcertada sinto
que vou saindo de um lado e entrando no outro, apesar de vagarosamente
faço pequenas ligações. A percepção do peso do corpo na cama, como uma dica preciosa,
denuncia o que está por vir, e assim surge aos poucos, bem aos poucos um leve
entendimento. Brota, como que por urgência, a materialidade que desperta certa
lucidez, ainda que rasa. O processo se acelera rápido,
e prossegue. A gravidade do volume de minha massa corporal me traz forçosamente
de volta para a substância, para a carne, para a matéria, para a realidade.
Percebo agora, de supetão, que não há mais dúvidas, estou viva, passei para o
outro lado, acordei.
A leveza e o torpor se dissipam, o
barulho dos carros na rua, do lado de fora, é prontamente reconhecido e com os
olhos pesados, mas semiabertos já posso identificar, apesar de ainda um
pouco obscuros os móveis do meu quarto. Começo, embora ainda um pouco perdida a
vislumbrar a silhueta da minha mesinha de cabeceira. Distingo os jogos de luzes
e sombras das persianas amarelas. Abro os olhos pela primeira vez naquele dia e
me reconheço mais uma vez. São meus primeiros minutos de mais um dia.
Como
em um turbilhão, desta vez acelerado, mil pensamentos deságuam freneticamente, um
a um, dentro de minha cabeça, como se fosse uma enxurrada. E assim vou rememorando
quem sou, onde estou, o que aconteceu ontem e o que devo fazer hoje. E é neste ritmo, agora arrebatador, neste
momento de desassossego e alvoroço mental que surge, como todos os dias, aquela serena
sensação de tristeza, que já me é conhecida, que não mais me surpreende e que
parece fazer parte fundamental desse momento de antevisão e que desaparece
assim que a interligação é enfim efetuada.
Tudo neste momento fica claro, acordei, o corredor foi
afinal percorrido.
"Serena sensação de tristeza " - que belo! Sempre associamos tristeza a algo ruim. Acabei de descobrir que não. Parabéns pelo texto!!!
ResponderExcluirEste comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirMe enrolei com o teclado rs
ExcluirBela sacada. Alguém já disse que o despertar é um momento perigoso, já que nele podemos nos perder e encontrar o abismo. Você encontrou o dia.
ResponderExcluirParabéns pelo belo texto!
Primeiro pensei que era uma interessante descrição de um nascimento, depois, na segunda leitura achei que era um despertar. Original, denso e verdadeiro.
ResponderExcluirM.Júlia
Um mundo de sensações!
ResponderExcluirQue original! Me fez pensar num mundo de sensações sobre as quais geralmente nem refletimos. Acho que o despertar não deixa de ser um nascimento, como observou a Julia. Que lindo quando encontramos a serenidade na nossa tristeza.
ResponderExcluirVaneska