ADORO VIAJAR, ODEIO TURISMO

Vaneska Mello

Há pessoas, geralmente incompreendidas, que não gostam de viajar. Se estressam com preparativos. Têm grande apego às suas rotinas. Estão satisfeitas com o que já conhecem. Entendo perfeitamente esses seres do fundo de seus sofás. Mas não sou um deles. Eu adoro viajar, o que odeio, hoje e cada vez mais é o turismo.

É certo que a distinção entre o turista e o viajante que aqui apresento não é científica. É só fruto caído de minhas impressões. Por isso não tem pretensão de verdade ou convencimento.

O turista tem roteiros e lugares imperdíveis a visitar. O viajante tem liberdade e lugares que sonhou conhecer. O “é imperdível”, ou o “como assim você não esteve lá” o oprimem sobremaneira. Impõem obrigações. As multidões, as filas e os atropelos em nada são compatíveis com o que entende por lazer e prazer. É um preço alto demais, que só paga por um desejo muito pessoal.

Viajantes estão mais focados no prazer da experiência do que no registro. Não fosse bastante o exagero desesperado nos cliques, atualmente um novo fenômeno assombra: o incômodo espetáculo dos turistas que só veem dos lugares visitados a reprodução da tela de suas câmeras, constantemente ligadas no modo selfie. 

Meu corretor ortográfico ignora o termo e insiste em corrigi-lo para sílfide. Produzem assim inúmeros registros de suas caras estranhamente distorcidas, que nada tem de sílfides. Lá no fundo, coadjuvando muito discretamente está a paisagem.

Ele terá inúmeros registros de sua passagem turística, mas não terá construído lembranças sensoriais daquela experiência. É claro que viajantes fotografam, mas o sorriso geralmente dura muito mais que um clique. 

Turismo não costuma ser atividade solitária. Viajantes, não raro, têm um prazer egoísta na solidão. Sozinhos, eles não precisam compatibilizar sua liberdade com a de mais ninguém. Podem estar mais atentos às sutilezas dos locais que visitam. Para eles uma viagem solitária é oportunidade de autoconhecimento. Ela lhe dá uma sensação ímpar de autossuficiência. 

Viagens românticas ou alegres e curtas viagens com grupo de amigos têm seu lugar. Quanto a grupos despersonalizados de turismo, entretanto, sempre manterão seus dois pés cansados, mas independentes, bem atrás.

Turistas compram bem mais que os viajantes. Pessoalmente, um dos grandes prazeres de viajar é aquela sensação de desprendimento, de não ter nada. Sem casa, carro, trabalho. De roupas, só o essencial. Como a vida pode ser leve quando viajamos! 

Pra quem sente assim, o turismo de consumo causa enorme desconforto. Focar em compras fere mortalmente o princípio basilar do que seja viajar – um exercício de liberdade. Se desperdiçamos muita energia em compras, voltamos a ser refém das necessidades e vaidades da vida cotidiana. Seguimos com bolas de ferro atadas aos tornozelos.

No fim das contas, o viajante faz muitas coisas que o turista também faz. O que os diferencia, de fato, é o espírito de que se incutem. O que move o viajante é o desassossego. Um desejo de movimento. Uma fome de inusitados. 

O viajante nunca perde o espanto e o encantamento, mesmo diante do revisitado. Não banaliza as sensações. Leva a alma na bagagem e lava a alma na leveza. Leva a cara lavada. Mantém a mente aberta e o coração sempre chega cantando. Tem razão o poeta. A melhor maneira de viajar é mesmo sentir.

*A verdadeira arte de viajar, Mario Quintana
**Afinal, a melhor maneira de viajar é sentir, Álvaro de Campos

Comentários

  1. Gostei da forma com que você distingue o joio do trigo. Detesto esse turismo nos museus em que vc.não consegue apreciar as obras por causa dos fotógrafos. Quando reclamei, fui saber que isso é boa propaganda para os museus, por isso agora consentem. Chamou minha atenção a sua "sede de mundo", do viajar com desprendimento, e do seu parágrafo final:".O viajante nunca perde o espanto e o encantamento diante novo e do revisitado, nunca banaliza as sensações".
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  2. O seu texto me fez pensar : sou uma autentica viajante mas curto comprar, fuxicar lojas e brechós, experimentar sabores e odores.../ tenho muita dificuldade de fazer malas/ adoro fotografar mas os temas sao muito proprios/ olha, lendo seu sexto paragrafo, fiquei motivada a experimentar isso > sair com pouquissima bagagem e nao comprar praticamente nada!/ quero tentar isso! / depois conto/
    Lia Cora

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  3. Bela sacada da dinâmica atual, em que a lógica do turista consumidor se sobrepõe ao de viajante, sujeito aberto à vida, a sua pluralidade e diferença.

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  4. Vaneska, gostei do seu texto desde o título! Tb sou uma viajante, acredito que se faz o caminho ao andar. Bjs, Julia V.

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  5. Como sempre, gosto dos seus textos, Vaneska. Realmente, tem gente que não gosta de viajar porque não quer correr riscos, se aventurar. Mas, tem os que viajam só para comprar, apesar de existirem as mesmas coisas em todo lugar. E o fotógrafo compulsivo.que não contempla uma paisagem, só fotografa. Bem observado.
    Sonia Andrade

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  6. Não entendo as pessoas que não gostam de viajar, que não são curiosas para conhecer outros lugares, outros costumes, outras comidas, outras paisagens. Não entendo também as pessoas que viajam em excursões, em grandes grupos barulhentos que conhecem muitos países em poucos dias. Não entendo as pessoas que preferem fotografar em vez de apreciar com os próprios olhos uma bela paisagem. Não entendo as pessoas que viajam para comprar, comprar e comprar. Vaneska sou como você: uma viajante

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  7. Seu texto mostra muito bem a diferença entre viajantes e turistas. Me identifiquei logo com o perfil do viajante.
    As características apresentadas, mostram a sensibilidade da observação, característica dos viajantes.

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  8. Adorei o texto e em identifiquei com ele. Eu também adoro viajar, mas perder horas na fila, enfrentar multidões e tirar mil fotografias enche o saco! Eu gosto de sentir o clima do lugar e observar o cotidiano das pessoas. É o que mais me encanta. Abraços!

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  9. Vaneska, muito bem construído o seu texto e o conteúdo a pura realidade.
    Também amo viajar, digo que sou viajante convicta na essência de tudo o que vc expôs. Belo texto e ensina o que há de ser enxergado para além dos olhos. Parabéns.

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  10. Tão importante viajar, ver a vida de outro angulo, liberar-se da cultura de um lugar e conhecer outras ainda que por pouco tempo. Comparo com a experiencia de atuar no teatro. Viver uma vida diferente daquela que levamos no dia a dia. Tenho certeza de que todos que buscamos numa viagem material para crear preferiremos ser viajantes a turistas!

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  11. Olá Vanesca! Interessante como você disserta e acerta, ao mesmo tempo com sutileza e profundidade. Devo confessar que tenho um pouquinho do turista, no quesito de viajar conhecendo novas pessoas e trazer lembranças e registros (não consumistas, mais da parte de suvinirs) mas sou muito mais viajante, por gostar de ir aonde minha alma e coração pedem pra estar. E realmente não importa quantas vezes, se algum lugar te "toca", em especial, é sempre, a cada vez, uma experiência nova e única! E este tema veio a me incomodar um pouco a alma, pois este "espírito viajante, a muito anda adormecido, retraído e "a esperar" em mim... Invejo quem tem o privilégio de poder ser sempre um "livre peregrino", que caminha com a "bússola de seus sonhos, extintos e CORAÇÃO". Parabéns por expressar, "escrevinhar" tão bem este sentimento, e tudo que nele está contido.

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  12. *"...sonhos, instintos e CORAÇÃO' ".

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  13. Nossa! Acho que tenho do turismo a parte de comprar, principalmente lembrancinhas...Mas detesto ir àqueles lugares que todos dizem: "Vc tem que ir" quando na verdade, quero dar uma volta num simples parque e observar as pessoas tomando meu café, conhecendo a cultura...Tiro algumas fotos, mas sem exageros. Isso é algo que me irrita em turistas.

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