SAUDADES
Angela Fleury
O
mundo está mudado. Não tenho muita certeza, mas tenho o sentimento de que em
algum lugar no passado, tudo já foi mais fácil, mais previsível, mais fresco,
mais calmo e mais lento. Vejo que hoje, o respeito, a compreensão, a gentileza,
a compaixão, a esperança, a leveza são muitas vezes esquecidos. As pessoas são
valorizadas pelo que têm e não pelo que são. Tudo é descartável, os carros, as
roupas e os eletrodomésticos são feitos para serem trocados. Os namoros e os
casamentos não são mais estáveis. As mulheres e os homens buscam uma difícil
reinvenção de si mesmos. Não há mais um modelo a ser seguido, cada um,
individualmente, tem que criar a sua maneira de viver e de ser feliz. Temos que
conviver com nossas diferenças, nunca fomos tão diferentes.
Não
entendemos mais da previsão do tempo. O verão fica mais quente a cada ano e já
não conseguimos olhar para o céu e acertar que roupa usar. Antes, se a
temperatura aumentasse e o céu se enchesse de nuvens baixas podíamos calçar as
galochas, era temporal na certa. Sabemos que há tempos e tempos. Sabemos que
tudo muda o tempo todo. Sabemos que há tempos de tempestades e tempos de
calmaria, mas nem sempre sabemos lidar com todas as mudanças.
No
Rio de Janeiro dos anos cinquenta dormíamos de janelas abertas, sem ar
condicionado e sem mosquitos, com uma suave brisa balançando as cortinas. A
cidade era mais silenciosa, menos povoada e menos agressiva, podíamos passear a
qualquer hora do dia e da noite. Brincávamos de queimado, jogávamos bola no meio
da rua, tomávamos banho de chuva e andávamos sem olhar para os lados, sem
desconfiar das pessoas, sem medo. Meus irmãos adolescentes voltavam à noite de
ônibus para casa sem perigo de serem incomodados. Não havia o mundo das drogas
nem o mundo virtual. Meus pais ouviam música clássica na vitrola e dormiam
sossegados. Respeitávamos os mais velhos, sentávamos à mesa para as refeições,
com meu pai na cabeceira, minha mãe ao seu lado, sem televisão e sem
smartphone. A família conversava. Cada membro do grupo tinha a sua hora de
falar, meus três irmãos mais velhos tinham que estar de camisa à mesa e não
podíamos nos levantar antes que todos acabassem de comer, a não ser se
autorizados por meu pai. Eu, como a caçula, tinha que ir dormir mais cedo e me
conformar em não ficar na sala depois do jantar ouvindo as conversas dos mais
velhos, que eu só poderia imaginar. Pedia a benção e ia dormir.
Tenho
o sentimento de que na década de cinquenta éramos felizes.
O
que estaria acontecendo naqueles anos, no Brasil e no mundo que justificasse
esse meu sentimento de tranquilidade e de segurança? Era uma situação que só eu
e minha família estávamos vivendo ou a vida transcorria assim sem transtornos
para todos?
Hoje
eu sei que no começo da década de cinquenta, o mundo respirava aliviado com o
final da Segunda Guerra, iniciando-se um período de grande prosperidade. O fim
da guerra em 1945 tinha alterado significativamente o cenário internacional,
com a divisão do mundo em dois blocos político-militares liderados pelas duas
superpotências emergentes: Estados Unidos e União Soviética.
O
Brasil tinha se alinhado com o pensamento dos americanos, rejeitando o
comunismo soviético. A prosperidade dos anos de 1950 criara um sentimento
generalizado de estabilidade, contentamento e consenso, não só nos Estados
Unidos, mas também no Brasil. Desenrolava-se no país um processo de
modernização e desenvolvimento. A década parece ter sido o que o Budismo chama
de “espaço entre”. Um momento para se respirar, uma pausa, um alívio. Estávamos
deixando para trás as décadas onde ocorreram as duas grandes guerras mundiais
sem saber, entretanto, que logo iríamos encarar um período de grandes
revoluções comportamentais e de distúrbios sociais na década seguinte.
Tenho
saudades dos anos em eu não sabia de nada disso.
Gostei do seu relato explícito e honesto de uma época que também conheci e compartilhei. Feliz em ter vivido no"espaço entre". Não há como não se ter saudades, Sem idealizações excessivas e nostalgias profundas. Tal como você colocou.
ResponderExcluirMaria Júlia,..
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirReflexão crítica, baseada em acontecimentos históricos, que nos permite perceber a sociedade sob a perspectiva das relações complexas que vigoram em cada época.
ResponderExcluirEliana
Todas as épocas tem seus prós e contras/ as coisas hoje não são tão definidas como eram nessa época que o texto enaltece/ mas, a década de 50, já estava gestando o que veio depois/
ResponderExcluirLia Cora
O texto repleto de saudosismo, nos deixa com vontade de saber o que mais havia no passado. Um texto que substancia um relato histórico. Um retrato da realidade que não existe mais.
ResponderExcluirO texto faz um recorte interessante da época, com informações pertinentes sobre o que ocorria no mundo. Um tanto saudosista, como é comum ao falarmos do passado.
ResponderExcluirInteressante esse texto, porque me fez reflexionar que em algum momento também pensei igual. Hoje ao contrario, sinto que cada vez existe mais liberdade de pensamento e também de escolha, inclusive para os saudosistas, porque atualmente pode ser inteiramente normal e aceitável viver dentro de uma estética anos 50, 60, 70 ou da década que se preferir, ouvir música em uma vitrola, andar de lambreta, usar topete e óculos Rayban, tudo esta permitido.Já no caso de outros fatores narrados no texto como a violencia, é importante ver que não é igual em todas as cidades do planeta.Em relaçao aos valores dos anos 50 é bonito de ver nos filmes, mas na minha opinião só nos filmes. Quando uma familia é harmoniosa , é em qualquer época, sem necessidade de um pai na cabeceira, nem dos filhos terem permissão para falar.
ResponderExcluirJurandir
ExcluirSei que é possível reviver o passado esteticamente. Também sei que não fica bem a gente ser saudosista. Bem, eu sou.Tenho minhas preferências. Não o cultivo, pois viver no passado já era, mas acho que viver no Rio antigo (digamos assim) foi um privilégio (de classe, classe média, sem dúvida) desconhecido da meninada de agora, coisas simples como brincar na rua, andar de bicicleta na praça ficar batendo papo com vizinhos na porta do edifício, praia de água limpa, voltar para casa de ônibus tarde da noite, etc e tal.Eu moro em um lugar onde ainda é possível fazer tudo isso e onde as crianças têm a reputação de serem as mais felizes do planeta.Quando venho ao Rio, fico com pena de ver as crianças nas ruas atravancadas, respirando o ar abafado de poucos verdes. Foi isso que o texto me passou.Quantos aos valores, bem... isso já são outros 500 a serem discutidos.
Abraços
Maria Júlia
É, não posso negar, me desculpem, o texto é saudosista. Confesso que a minha geração que viveu a juventude nos anos, 60 e 70 se vê como uma geração de privilegiados. Além de ter passado a infância em um Rio de Janeiro dos sonhos, vivenciei todas as importantes mudanças dos anos revolucionários e isso foi sem dúvida uma experiência inesquecível! Todas as transformações pelas quais o mundo passou nos últimos cinquenta anos se devem, a meu ver, aos movimentos de contestação dos valores da sociedade tradicional. Se hoje vivemos em um mundo com mais liberdade individual devemos muito às tribos idealistas daquela época.
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