SOBREVIVENTE

Eliana Gesteira

Exausto, um caminhante senta em uma pedra para descansar, bebe um pouco d'água e passa as mãos nas costelas para enxugar o suor que escorria. Embora há muito tempo não ouvisse seu nome, o homem ficou feliz por ainda lembrar de uma voz de mulher chamando: “Ismael, Ismael”. Fecha os olhos e volta ao dia em que acordou no porão no qual trabalhava e onde percebeu, sem entender, que o mundo que conhecia havia acabado. De volta ao presente viu com desgosto a nuvem de poeira fina que cobria tudo e que fazia desaparecer as formas e as cores ao seu redor. 

Não estava claro para aquele homem o que havia ocorrido e nem o porquê de sua singular situação de único sobrevivente. Embora não pudesse afirmar com precisão a data em que estava, sabia que o ano devia ser o de 2028, pois
observava diariamente o movimento das estrelas e do sol na tentativa de antever fenômenos naturais e manter-se vivo. Em suas contas haviam se passado cinco anos e ele teria então 44 anos de idade.

Suas companhias eram agora os insetos, as baratas e os ratos, vistos passando cobertos pelo pó cinza claro que impregnava todas as coisas. Ratos que, além da companhia, lhe possibilitavam não morrer de fome. Para caçá-los fazia à noite armadilhas com gravetos e pedras colocadas de modo que caíssem e lhes esmagassem os corpos. Bastava no dia seguinte voltar ao local, pegar a presa e fazer o almoço. A água recolhida da chuva lhe garantia não morrer de sede.

Como a sobrevivência física estava garantida, mesmo que precariamente, Ismael acabou desistindo de buscar explicação para aquela situação bizarra em que se encontrava. Homem de poucos arrojos, tinha passado sua existência sem desejos de fama ou fortuna. Viver simplesmente bastava e de alguma forma isso se confirmava em seu mundo anterior.

Nele as coisas pareciam chegar de maneira natural e sem muito esforço, como as boas notas no colégio, a entrada para a faculdade, o emprego no banco, o casamento com a amiga de infância, os filhos saudáveis e a certeza de que tudo estava em seu perfeito lugar.
 
A necessidade de decidir entre ir procurar respostas e outros sobreviventes ou ficar em sua atual condição não chegava a ser um dilema. Subsistia nele uma esperança de que tudo não passasse de um pesadelo e que acordaria novamente no sofá de sua sala ou na saleta de seu escritório, mesmo que a passagem dos anos o desmentisse e a razão apontasse para aceitar seu destino. Assim, quando uma dúvida qualquer chegava, ele balançava a cabeça e, pensando no absurdo da situação, escolhia a própria lógica de seguir em frente até o dia em que tudo aquilo acabasse.

Começara também a falar sozinho, não só para aclarar as ideias, mas porque o som da própria voz lhe trazia conforto e segurança. E conforto era algo do qual sentia falta. A ponto de ter sonhado, ao ver um porco do mato passando ao longe, que o tinha comido assado usando pratos e talheres em uma mesa com toalha limpa e cheirosa.
 
Já acordado, usou todas as forças para executar a tarefa de caçá-lo, sabendo de antemão que precisaria de um artefato mais elaborado do que aquele que construíra para pegar ratos. Procurou mais uma vez se valer de algum filme antigo, lembrando de um personagem que fazia armadilhas em buracos cobertos com palhas para caçar animais na selva. Fez seu plano, escolheu os locais e neles cavou buracos profundos. Terminado o trabalho, voltou ao abrigo ao anoitecer para dormir.

Na manhã seguinte caiu uma chuva torrencial. O que veio a calhar, uma vez que as provisões de água estavam se esgotando. Retornou dois dias depois, caminhando a metade do dia para encontrar uma de suas armadilhas.
 
Ao se aproximar diminuiu o passo e rastejou para expiar a beirada. Surpreso, viu que no buraco havia uma pessoa caída. Pulou imediatamente para dentro, ajoelhando-se e inclinando-se sobre o corpo para virá-lo de frente. Com cuidado tirou a lama que cobria o rosto, o qual, para seu espanto, era conhecido. Chamou carinhosamente: “Mia, acorda; meu amor, sou eu Ismael”.

Como não houvesse resposta, pegou a mão da mulher e apertou com força; sacudiu seu corpo devagar; chacoalhou para frente e para traz. Mas nada.

Alucinado, deu um salto e passou a correr. Correu muito até chegar a um precipício onde se jogou, caindo num lamaçal imundo, escorregadio e pegajoso. Dele conseguiu sair para voltar ao abrigo, levando consigo unicamente o peso de ter sobrevivido.

Comentários

  1. .Imagens de naufrágio e science fiction passam pela minha cabeça. Relato cru e insólito que causa impressão.

    Maria Júlia.

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  2. Relato realmente insólito. Muito fluído e bem amarrado na forma. Acredito que a autora contou uma história cheia de enigmas sobre a capacidade de adaptação nas adversidades, a aridez e até mesmo sobre relacionamentos!

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  3. O cometário acima é de Vaneska rs.

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  4. Nossa! o pesadelo atinge em cheio o leitor/ original e forte/ parece um Prometeu futurista/
    Lia Cora

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  5. Texto fluido e suave mas que vai nos levando, como em um filme, para um pesado desenrolar dos fatos. Sonho, pesadelo ou realidade? Ficção ou vida real? Fica a dúvida até o final. Me fez pensar, gostei!

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  6. Temos uma machadiana na roda?
    Acho que sim ;-)

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  7. O texto não deixa claro se era um pesadelo ou não. Se era esse o objetivo, tudo bem. Mas, confesso que estava torcendo pra ser pesadelo e o cara acordar. Lembra um pouco o filme " Náufrago". Prende a atenção do leitor.

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  8. Me identifiquei muito com esse texto. Primeiro pelo tema que não é um tema fácil de desenvolver e a autora o fez com muito talento. A estrutura se asemelha mais com o conto ou uma história curta, outro detalhe que gostei muito. Eu pessoalmente quero buscar quase sempre algo de ação. Não que eu não goste da viagem que se pode fazer dentro de nós mesmos, claro que sim. Mas desenvolver uma narrativa, dar vida aos personagens, contar uma história com principio meio e fim (não necessariamente nessa ordem)acho maravilhoso e voce fez isso muito bem. Muitos elementos interessantes, descricões de ambientes que chegam a ser oníricos e um final que poderia ser mais bem um novo começo...
    Parabéns!

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  9. Algumas questões que me coloco sobre o exercício de escrever:
    O que contar e o que deixar por conta do leitor? Às vezes perco a mão (lembrei de algo que fiz no curso da Estação). Mas no caso de O sobrevivente, se pesadelo ou realidade futura? É por conta do freguês.
    Como despegar a uma frase ou ideia? Bato cabeça, tento manter, mas normalmente vai pro saco de guardados.
    Como nomear os personagens? No meu conto busquei inspiração no narrador de Moby Dick. No livro, Herman Melville o apresenta logo na primeira frase: “Call me Ishmael”, mas quem lembra de Ismael? O Capitão Ahab é simplesmente inesquecível e arrasador. No caso, queria mesmo um personagem esquecível. Queria a sensação, o clima da história.
    Enfim, para mim, o trabalho de escrever tem parecido muito com o do escultor: tira-se muita pedra para que a forma surja.

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