OLHARES MEIGOS E PROFUNDOS

Angela Fleury

Aquela visão nunca mais sairia da minha cabeça. 

Uma pequena cidade avermelhada de ruas de terra batida, com construções de argila, de um só andar, sem telhado aparente e com amplas aberturas que me confundiam. Seriam portas ou imensas janelas? Figuras bíblicas caminhavam sem pressa pelas ruas empoeiradas, com suas longas barbas escuras e turbantes que davam mil e cuidadosas voltas. Calças largas, de ganchos enormes, longas batas.

Era novembro, fazia frio e todos estavam envoltos em mantas e cachecóis de lã. Eram muitos panos que se sobrepunham em total harmonia estética. Tudo parecia fluir dentro de uma energia leve, primitiva e única. Homens altivos que expressavam orgulho e doçura em seus grandes olhos negros. 

Nunca mais iria esquecer aqueles olhares meigos e profundos nas ruas de Herat. 

Ao entrar no Afeganistão no ano de 1977 toda a infraestrutura moderna ocidental, que eu conhecia, parecia não existir naquele lugar. Eu e meu mundo ocidental contrastávamos com tudo ao redor. A tecnologia afegã baseada no barro, na madeira e no couro transformava a energia da cidade. Tudo tinha um colorido harmônico que variava em tons de marrom, brancos e vermelhos escuros. 

As ruas de terra nunca tinham visto um asfalto. Bicicletas e alguns raríssimos veículos motorizados, tipo lotações e caminhonetes, eram as únicas indicações que me faziam lembrar, vez por outra, que estávamos no século XX.

Toda a atmosfera da cidade me transportava para a cena de um filme bíblico.

Não se via mulheres nas ruas de Herat. Mas ao contrário do que se poderia imaginar, apesar disso, eu sentia um clima de paz e de tranquilidade. Os olhares dos homens, para minha surpresa, eram olhares ingênuos, curiosos como olhares de crianças. Eu não me sentia intimidada pelos homens afegãos. 

Até hoje busco um entendimento desta minha experiência no Afeganistão.

Quem eram aqueles homens meninos que tanto me encantaram com seus sorrisos e olhos gentis? O que teria acontecido com eles? O que realmente teria sido esse meu encantamento por aquele país islâmico?

Eu e o Afeganistão de 1977 tivemos um caso de amor.

Comentários

  1. Nostágico e bonito, Angela, A gente consegue vizualizar o cenário com você caminhando, encantada e meio ofuscada. Reconheço o sentimento.
    Maria Júlia

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  2. Excelente descrição do lugar. Podemos imaginar como eram os costumes e como as pessoas viviam no Afeganistão na década de 70.Adorei seu texto, pois tenho fascínio pelas culturas diferentes da minha. Um grande beijo!

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  3. As ruas, as cores, os detalhes, tudo isso se mostra em seu texto e nos permite viajar junto com você, sentindo e imaginando todo aquele cenário.
    O texto descritivo nos permite perceber as sensações vividas, imaginando os cenários da época.
    Uma verdadeira fotografia.
    Elisa

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  4. Importante contraponto ao imaginário negativo construído em torno de um povo que passou pela violência das invasões soviéticas e norte americanas. Você lhes devolve a humanidade.

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  5. Muito competente o trabalho descritivo. Acredito que o grande trunfo do texto é exatamente a descrição de um cenário tão árido de forma tão delicada que meu imaginário pode contemplar a doçura dos olhos "meigos e profundos". Ah, os minúsculos parágrafos que vão se intercalando dão muito charme ao texto!
    Vaneska

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  6. Lindo texto que faz reflexionar sobre a tolerancia as demais culturas muitas vezes tão exoticas para os ocidentais. A maneira delicada e a escolha acertada das palavras nos leva junto com ela naquele passeio pelas ruas de Herat.

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