PARA FALAR COM RENAN EM PORTUGUÊS

Julia V

Esquecer Renan? Não!

O exorcizei.

Era tanta gritaria, ficava sem fôlego. É que eu não sabia fazer/ ser diferente. Quebrava tudo, me contorcia. O "an" ecoava por toda a casa, eco do vazio. Ele levou tudo. Fiquei naquela solidão enorme, de frente para o mar, com dois andares, corredores, quartos, sala de jantar, poucos livros espalhados, que eu rasgava; quadros valiosos, que quebrei; cristais e prataria que eu atirava.

Ruídos intensos.

- Rena an an aaaaan!

Os vizinhos foram bater lá em casa.
- Querida Vera, podemos ajudá-la de alguma forma?
- Chamem a polícia, o hospício, um bandido – dizia, espumando de raiva. A pior coisa que tinha era ver aqueles olhos esbugalhados, sombracelhas arqueadas, preces de misericórdia.
Sim, começaram a rezar. Naquela viagem, drogada de tristeza, semi-consciente de dor profunda em corpo e alma, eu ouvia os sussurros das orações. Eram seis vizinhos, mas meu quarto parecia estar cheio de gente. Todos vestidos de branco. Deitada na cama, tilintando de febre, aqueles murmúrios piedosos.
Eram Cardecistas, em sua maioria, porém, lembro-me de ver terços e pessoas tecendo rezas Católicas. Não sei se era minha memória de infância, quando a família cercou meu berço, porque eu quase morri de pneumonia.  Bebê, ainda na Espanha.
Depois veio aquele país ensolarado, onde se ouvia os cantos dos pássaros, o barulhinho bom do mar do Arpoador. Sentia a brisa no rosto e nunca mais tive medo de morrer.
Sim, essa sensação de morte iminente acompanhou-me durante boa parte de minha infância e adolescência. Incomodava-me não poder falar tudo o que queria, não poder ouvir o som de minha própria voz em português. Poucos me entendiam realmente, pensavam que sim, que se podia falar fluentemente espanhol, o que eu ouvia era uma língua híbrida, que poucas vezes fazia sentido. E esse não entender o sentido das coisas faladas e ouvidas era também uma espécie de morte...

Renan me ensinou o português. Era professor de literatura. Estudava Fernando Pessoa. E foi com esse poeta riquíssimo que aprendi a ler e falar em português. Com o mestre, aprendi a gritar. E gritava em português minhas mágoas, minha dor e a falta que ele fazia.

- Rena an an na!! Volta!! Por Deus, volta, Renan!! Não faz assim, vou morrer!! Rena an an na!!

Até que a dor foi passando, as lágrimas, secando, as rezas, fazendo efeito. E eu levantei da cama. Ainda trôpega, porém viva. Sete quilos mais magra, mas o corpo funcionando, o coração batendo, as veias saltando sangue.
Abracei todos aqueles que rezaram por mim. Agradeci a cada um em particular e a todos em conjunto. Doei minha casa, minhas coisas, tudo. Voltei para a Espanha. Era chegada a hora de enfrentar de verdade a morte e ouvir minha própria voz em espanhol, dizendo que havia cansado, extenuado, desistido de mentir em português.
- Pues no se pude decir la verdad em outra lengua. Siempre que se habla palabras extranjeras, se miente – disse meu irmão de braços abertos ao receber-me na nossa velha casa.

De repente, me dei conta de que havia escrito este texto em português...

"Nem vá dormir como pedra
e esquecer o que foi feito de nós",
"O que foi feito devera (de Vera)",
Milton Nascimento e Márcio Borges.

Comentários

  1. Para mim, escrever uma história na primeira pessoa é ainda bem difícil. Mas você, Júlia, parece bem à vontade. Foi tão convincente, que entrei de cabeça no bololô da vida dessa mulher, que não sabemos nem o nome.

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  2. Li como se fossem mini crônicas de diversos momentos de luto do amor perdido Texto original com um final que surpreende. Gostei de": o que foi feito (devera) de Vera." Interessante
    Eu também meti espanhol e música no meu texto!
    Maria Júlia

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  3. Nossa Julia! Amei seu texto! Ele é tão fino e rebuscado, cheio de tiradas poéticas. Interessante que o texto que num primeiro momento parece caótico, conta uma história muito bem amarrada e deliciosamente encerrada. Me ganhou!

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  4. Seu texto, ao final, me deixou uma dúvida: verdadeiro ou fantasia?
    As cens descritas, passado e presente simultâneos não confundem, pelo contrário, traçam o cenário necessário para o belo desfecho.
    Elisa

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  5. Renan morreu, Renan foi embora... como chorar a morte de Renan em português? Como não quebrar a casa inteira? Como não perder sete quilos? Como não gritar? Como não morrer junto? "Chamem a polícia, o hospício, um bandido – dizia, espumando de raiva". Como não gritar e morrer com você Julia V ?

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