A CAMISOLA

Eliana Gesteira

O silêncio preenche tudo. De repente um barulho. Uma cabeça branca se estica, mas só consegue ver um carro desaparecer na esquina. Olhos miúdos e frustrados vagueiam sem interesse e, sobre braços cruzados na janela, esperam. 

Cansados, eles se voltam para dentro, deixando sem vigilância a rua de poucas casas e muitas árvores. 

Mãos ossudas resolvem então pegar uma flanela e passar entre os espaços vazios de cadeiras empoeiradas. Findado o serviço, olhos e mãos se juntam para conferir os móveis e, estando ambos satisfeitos, uma senhora se apruma, toma um banho, almoça e resolve tirar o cochilo habitual. 

A senhora desperta e retorna à sala, arrastando seus chinelos de pano. Ela senta no sofá e entre almofadas gastas e puídas procura o controle remoto para ligar a televisão. Não demora mais do que cinco minutos e se levanta:

— “Definitivamente, não há nada que preste”, resmunga.

Caminhando lentamente chega ao quintal. Lá dá uma espiada no céu para ver se vai chover e logo se senta num banco à sombra. Depois de olhar em volta, torna a ficar de pé e vai até a roseira para tirar com cuidado um galho. Em seguida, vê que a goiabeira se encheu de flor e que as petúnias precisam de um pouco de água. Molha-as. Entra, liga o rádio e toma seu café com leite e bolachas de todos os dias. 

Logo a casa se encontra às escuras e alguns clarões de poucos faróis iluminam as paredes e o teto da sala. 

Na quase escuridão, os objetos em permanente ociosidade durante o dia se mostram agora ainda mais inertes. A senhora olha em especial para um. O porta-retratos que traz a figura jovem de seu marido. Nele, o falecido sorri meio sem graça. A mulher sorri de volta e pensa com gratidão na única gentileza de que foi capaz, a de morrer primeiro que ela. E sorri mais ainda.

Antes de deitar, a senhora se pôs a ajeitar algumas coisas no armário do quarto, de modo que acabou encasquetando com uma caixa jogada na prateleira de cima. 

Pegou uma escada, subiu três degraus e nas pontas dos pés se equilibrou para tentar pegá-la. Tanto mexeu, que a caixa acabou lhe caindo à cabeça, espalhando pedaços de papelão para todo lado e fazendo saltar de dentro, enrolada em papel manteiga, uma camisola que há muito não via. Estava um pouco manchada e cheirando a naftalina, mas a beleza do corte godê e a maciez da seda ainda faziam dela uma bela peça de roupa. 

A senhora estendeu a camisola na cama e viu que ela certamente não lhe caberia mais e resolveu deixá-la ali mesmo para decidir o que fazer. Enquanto olhava, pensou que, afinal, o falecido não havia sido assim tão inútil e lembrou dos bons momentos que passaram juntos. Um calor agradável lhe percorreu o corpo.

Então, despiu-se, deitou-se na cama, cobriu-se com um lençol e ficou em silêncio esperando que o sono viesse. 

Como não conseguisse esquecer a camisola deixada ao lado, sua mão buscou tocar o tecido novamente, se deliciando com a maciez e a finura da peça. A outra mão, livre, acabou encontrando o ventre, que acariciado, moveu-se num espasmo. 

Teve medo. 

Mesmo assim, com delicadeza, deixou que a mão fosse escorregando um pouco mais para baixo. Assim, leve e suavemente, suas adormecidas carnes despertaram e foi sem peso, culpa ou vergonha que Alzira se entregou. 

Depois de um longo dia, uma cabeça branca agora repousa, uma camisola jaz caída no assoalho e o silêncio volta a se derramar na rua de poucas casas e muita árvores.

Comentários

  1. Adorei! O texto me passou varias emoçoes, no principio a solidão da velhice. Fico pensando como vivemos com tanta voracidade, muitas vezes com tantas ambiçoes materiais e não somos capazes de solucionar essa parte das nossas vidas q bem ou mal um dia chegará. Tem uma frase otima, "sua unica gentileza foi ter morrido primeiro" adorei. Tambem achei otimo q por fim quebramos certo tabu de entrar em temas sexuais. A autora ja havia esboçado certa sensualidade do segundo texto mas nesse foi mais longe com o tema da masturbaçao e ainda mais na terceira idade... Gostei do tom, com estilo mas sem falsos pudores, como a dura e crua realidade.

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  2. Bonito, delicado, comovente, de fio a pavio!
    M.Júlia

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  3. Quase cedi à autocensura. Mas recuei, porque sabia que encontraria a fina sensibilidade de meus companheiros escrevinhadores. Aqui me sinto estimulada e livre para escrever. Obrigada!

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  4. O texto, suave e com emoções de saudades. vai transfigurando a mulher, transformando-a em um ser vivo, com carne e desejos. Gostei muito da transmutação sofrida por essa mulher.

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  5. Adorei o texto, irretocável. As descrições são todas tão bonitas e rebuscadas, fugindo do lugar comum. Assim como o Jurandir, fui atravessando as diversas emoções que o texto estimula. Um viva para abordagem do tema sexual, tanto mais por tratar-se de sua inserção na maturidade e da bela forma como foi realizada. Parabéns.
    Vaneska

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