ENCONTROS


Eliana Gesteira

Alfredo pegava o ônibus toda manhã às 6h, almoçava às 12h e saía às 17h. Nas ruas do Centro da Cidade andava apressado, cabeça baixa, fugindo dos esbarrões e da confusão de gente que olha mas não vê. Chegava com pontualidade em sua sala às 8h e executava prontamente suas tarefas. Por ser eficiente e rápido, ganhava tempo para distrações, que consistiam basicamente em se imaginar ora roubando a empresa em que trabalhava, ora pilotando aviões ao redor do mundo. Esse, um sonho gasto, por tantas vezes sonhado.

Alfredo também era pouco afeito a amizades, portanto, foi com surpresa que ouviu seu nome na avenida movimentada onde fazia sua caminhada na hora do almoço. Era o Vítor, um conhecido que não via há anos. Pelos modos e roupas do sujeito, pode perceber que ele havia vencido na vida e que parecia gostar de se gabar. Essa impressão levou Alfredo a desconversar sobre seu emprego atual e embaralhar-se nos assuntos daquele inusitado encontro. Ao ir embora, sem mais nem menos, soltou: — “A vida tem um gosto amargo, amigo”.

Já sozinho, não parou de se recriminar pelo que havia dito: “Onde estava com a cabeça ao se abrir assim?”...“O que o amigo iria pensar dele?”...“Ah, devia ter desviado do caminho como sempre fazia quando via alguém das antigas”.

Tão absorto estava em suas inquietações, que não viu surgir em sua frente uma cigana que lhe pedia para ler a mão. Quando deu por si, quis seguir adiante, mas rendeu-se ao ser cercado por uma barreira de saias rodadas e floridas que lhe impediam a passagem.

A cigana que o abordara era jovem, alta e esguia. O cabelo negro era comprido e escorrido, estando coberto com um lenço muito colorido que lhe dava um ar campestre. Ela estendeu suas mãos, pegando as do Alfredo com muita delicadeza a fim de decifrá-las, e olhou fixamente em seus olhos. Ele, sem coragem de desviar o olhar, ouviu com atenção o que a mulher tinha a lhe dizer:

 “Vejo que o senhor precisou renunciar a muitas oportunidades”.

— “É verdade”.

— “É uma pessoa firme de caráter e também obstinado”.

— “Sim. Isto está mesmo aí!?”

— “Mas procure tomar cuidado com a inveja de pessoas próximas e evite se expor ao perigo”.

— “...Tá...”

— “O senhor pode pagar a consulta”.

Alfredo tirou da carteira quase tudo que possuía, o que não era muito, e deu a jovem cigana. Voltou para o serviço atordoado, pensando que aquilo tudo era demais para um dia só e decidiu antecipar a saída do trabalho. Foi logo para casa e se recolheu ao quarto. Deitou na cama e por um curto tempo distraiu-se com a luz filtrada pela cortina que balançava na janela. Em seguida, olhou indiferente a parede descascada, o taco solto e sentiu um cansaço antecipado, prevendo a noite longa que teria pela frente.

Na manhã seguinte não quis sair de casa. Foi tomado por uma lerdeza, que logo passou a uma apatia que lhe impediria de sorrir ou de praticar outras civilidades forçadas. A apatia foi aos poucos se transformando em um medo que o levava a fugir das pessoas. Para não se expor ainda mais, exigiu umas férias que lhes eram devidas e acabou por se trancar em casa, tolerando somente a presença de entregadores de lanches e pizzas.

Uma semana depois, farto do regime de comidas rápidas, pediu por telefone uma moqueca capixaba ao restaurante da esquina. Salivando diante do cheiro delicioso que lhe invadia as narinas, comeu aos bocados o delicioso prato, parando somente quando começou a sentir uma estranha dificuldade em respirar. Tentou ligar para o pronto socorro, mas como não conseguia falar, deitou-se na cama se revirando em dor.

Ali mesmo, sozinho e desamparado, Alfredo acabou vítima de uma espinha de peixe que lhe perfurou o esôfago, fazendo com que sangrasse até a morte. Caso pudéssemos vê-lo um segundo antes de encontrar seu descanso eterno, veríamos em seu rosto uma última expressão, a de espanto, que surgida num átimo, revelava que Alfredo reconhecia o quão banal tinha sido o derradeiro ato de sua vida.

Comentários

  1. Como leitora do próprio texto, vi que ele precisava de umas tesouradas e que o final soou um tanto pretensioso. Confesso que tive vontade de “passar a vez”, como disse o Jurandir, e que dei uma travada, começando a escrever aos 45 do 2º tempo. Mas, enfim, o que contou, e conta, é o prazer de rabiscar umas poucas palavras.
    Eliana Gesteira

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  2. Seus textos, sempre originais, o diálogo com a cigana curto e direto,um final trágico, repentino- você gosta deles, né Eliana?

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    1. Embora seja o primeiro protagonista que acaba morto em meus contos da Roda, concordo que há uma pegada trágica nas situações vividas por eles.

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  3. Fiquei com pena de seu personagem, por ter acreditado naquilo que lhe foi dito, sem grandes reflexões ou dúvidas em relação às "revelações". Acabou sendo vítima da auto-profecia, que, lhe foi tonada por uma cigana.

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  4. No final das contas o "grande perigo" que ceifaria a vida do personagem, seria uma banalidade. Acho que é um conto sobre a importância das banalidades. Que bom que "não passou a vez", o resultado foi um conto muito bem escrito e original.
    Vaneska

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  5. Adorei seu texto Eliana. Se esse é um texto que sai quando você está travada, aos 45 do segundo tempo, imagina quando estiver mais solta. Você começa seu texto descrevendo brilhantemente a tensão e a rigidez que ronda seu personagem. Já no segundo parágrafo o clima pesa ainda mais dando um gosto amargo na boca. A tensão se agrava quando você nos dá acesso aos pensamentos inquietos e de auto recriminação de seu personagem. O encontro com a cigana, apesar de muito bem descrito, é apenas um encontro banal de pouca importância diante dos sentimentos de solidão e desamparo que ali já estão instalados há muito tempo. Daí em diante, nos três últimos parágrafos o texto decola lindamente para o grand finale da morte de seu personagem. Parabéns! Texto impecável. Senti a pressão. Adorei.

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