MERGULHO NO MAR

Jurandir de Oliveira

Busco um papel e um lápis e começo a fazer algumas anotações . No princípio o tema não me atraiu muito, estive a ponto de passar a vez. Então tive uma ideia:incluir uma cartomante em um texto que escrevi tempos atrás sobre um crime. Seria uma solução perfeita se eu não tivesse tão boa memória. Fui buscar entre meus velhos e empoeirados livros e já quando ia desistindo de procurar encontrei o volume de contos de Oscar Wilde e entre eles O Crime de Lord Arthur Savile. Me sento ai mesmo em um puff ao lado da estante e releio rapidamente o têxto. Minha memória não é tão boa como pensei, pois se trata de um quiromante e não de uma cartomante. Foi então devolvendo o livro ao seu lugar que me lembrei de Macabéa. Ahh Macabéa Macabéa dizia a voz sonora de Fernanda Montenegro transmutada em cartomante no filme a Hora da Estrela: Macabéa, Macabeazinha... 

Atrasado, vou para o trabalho com essa imagem e a do carro fulgurante que no desfecho terminava com a vida da tão real quanto absurda Macabéa. De repente constato mentalmente que não sei muito sobre a criadora do inesquecível personagem. Entre uma e outra coisa, pouco sei sobre Clarice. Vou buscar na internet e encontro um vídeo em varias partes e versōes da sua creio, ultima entrevista. As vejo uma e outra vez. Pedaços, às vezes completas, repito partes que me chamam mais atenção que outras. Me fixo nas palavras, nos gestos, no olhar. Anoto algumas palavras. Hiatos... Reflito que ali esta um pedaço de Clarice. Somente um pedacinho, mas é real. Como ela mesmo diz, "eu não sou aquilo". Penso que nem aquilo nem o outro, mas também." Eu sou alegre. Hoje estou triste porque estou cansada" Ela fala no ovo e na galinha e eu me conecto imediatamente com o gato de Schrödinger. O existir e o não existir como obra do acaso. Pensei sobre a sorte. Tantas imagens . O momento que o espermatozoide fecunda o óvulo. Sorte? É verdade que na corrida ganha o mais forte. Mas também se dá a sorte do encontro de um homem e de uma mulher em seu momento fértil. A sorte pode ter muitos aspectos. 

Pode ser tragicômica como a de Macabéa. Clarice indagada sobre A Hora da Estrela diz: " eu estava saindo de uma cartomante, então eu ia no taxi e pensei, seria "engraçado" se depois de ter ouvido tantas coisas boas da cartomante um taxi me atropelasse e me matasse. Assim nasceu a ideia de incluir esse final na história". 

Me interessa tudo nessa entrevista. A roupa de aparência fresca com a bolsa amorfa de lona no colo. 

O imenso cinzeiro ao lado da poltrona. Fumando um cigarro atrás do outro. E as mãos que expressam mais que os músculos do rosto perfeitamente maquilado "Clarice Lispector. De onde vem esse Lispector? "Assim começa a entrevista. Os olhos “achinezados” e o rosto anguloso tantas vezes visto em fotos adquirem um aspecto como de uma máscara, que não sou capaz de explicar. Impregnada a minha alma com todos esses novos elementos antes por mim desconhecidos chego em casa, e é desta vez sobre as páginas resgatadas de outro velho livro, a Maçã no Escuro, que me entrego a um sono profundo. 

Comentários

  1. Interessante este texto,uma abordagem em cima de divagações sobre Macabeia. Conheço a entrevista, realmente a expressão dela é mesmo estranha, meio máscara, chegou a me desapontar um pouco. Você se saiu muito bem da incumbência sem ter feito nenhuma consulta.

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  2. Obrigado, é verdade nunca fui a uma cartomante. Em relação a Clarice Lispector, a entrevista é muito especial porque tempo depois ela morreu de cancer. Talvez já soubesse ou pressentisse, a gente sempre sabe quando as coisas não vão bem com a saúde e a disposição física e mental é outra. De todos modos é importante pensar que o dom da palavra escrita e a arte da retorica são dois coisas bem diferentes, talvez o melhor entrevistado não resulte ser o escritor mais brilhante.

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  3. Texto interessante que, a princípio, achei que não traria nada sobre o tema proposto mas, com elegância e astúcia nos conduziu até o elemento proposto - a cartomante. Aliás, A Hora da Estrela é um belo filme.

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  4. De fato é muito interessante ver como o tema é abordado diferentemente por cada um dos escrevinhadores, e com soluções tão interessantes. O texto vai costurando temas, informações, divagações ... Em dado momento também acreditei que a cartomante seria esquecida, que teria sido apenas uma desculpa pra iniciar, mas não, ela estava lá, arrematando finamente o texto! Já vi a entrevista também e agora tive vontade de revisitar.
    Vaneska

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  5. Forma bastante original e criativa de abordar o tema fazendo uma ligação com a obra de Clarice Lispector. Recomendo a quem tem interesse pela obra e pela vida da escritora a ler o livro Clarice, de Benjamin Moser.

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    Respostas
    1. Sonia, o livro dele é muito bom, é um amigo,mora aqui!
      M.Julia

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    2. Sonia, o livro dele é muito bom, é um amigo,mora aqui!
      M.Julia

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  6. Eu li as entrevistas dele. Adorei! Ele é bastante divertido. Numa entrevista disse que a paixão dele por Clarice é tanta que ele só gosta de quem gosta de Clarice. E uma felicidade ver que a obra de Clarice esta cada vez mais conquistando essa merecida universalidade.

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